03 janeiro 2006

De minhas origens

Na era pré-container, "avarias" era a forma como eram registradas as mercadorias desviadas do cais para o mercado negro que supostamente teriam se quebrado ao descarregar. Impressionante como dava "avaria" no turno noturno das docas, quando meu avô trabalhava. Por razões desconhecidas, as "avarias" ocorriam com freqüência maior em carregamentos de bebidas. Meu velho se emociona até hoje quando conta a primeira vez que tomou um Anis del Mono, em um Natal de sua infância - uma guloseima nova. Era uma das "avarias" de meu avô, que ele trouxe para animar aquele Natal, o que deu origem a uma das poucas tradições natalinas de minha família.

Dava tanta "avaria" que o velho do meu velho conseguiu reunir o capital inicial para largar o emprego e abrir um boteco em uma esquina perto do porto, no que é hoje o final da Avenida Pedro Lessa, lá pelos idos de 1952. Meu velho tinha menos de seis anos e a família morava no andar de cima do bar. O empreendimento do meu avô foi financiado com "avarias" para sustentar o alcoolismo de seus antigos colegas portuários.

Como o dinheiro do bar era pouco e a inadimplência alta, meus avós logo tiveram que apelar para métodos menos ortodoxos para complementar o caixa. Meu avô passou a abrigar um posto avançado do jogo do bicho em uma mesa discreta no caminho do banheiro, em troca de pequena comissão. Minha avó provavelmente era uma das razões do caixa baixo, pois ela também costumava dar "avarias" no estoque do bar para aplacar sua viciada sede, mas logo achou uma forma de compensar o prejuízo.

Alguns jovens freqüentemente passavam no bar a caminho do cais, deixavam um café na pendura e ainda pediam um trocado para minha avó. Ela emprestava, sabendo que o dinheiro seria usado para comprar maconha, mas como ao fim do dia os moleques voltavam com o dinheiro mais alguns camarões frescos de presente para o jantar, uma forma de juros, a velha de meu velho não via muito problema.

Um belo dia, um freguês aparece no bar com um vaso grande e uma planta que a velha de meu velho nunca tinha visto no jardim. "Sabe o que é isso, Dona Guiomar? É maconha...". Imbuída do espírito capitalista, ela resolveu abandonar a operação de financiamento. Trocou a pendura que o cliente tinha no bar pela plantinha e passou a fornecer diretamente a mercadoria, cortando assim intermediários e contribuindo para a maior eficácia da circulação de bens daquela região, em benefício, obviamente, dos consumidores. O preço caiu, a qualidade subiu, os negócios prosperaram...isso acabou levando ao fechamento do bar, mas esse assunto é tabu na família e as circunstâncias precisas do fim do empreendimento não chegaram aos ouvidos de minha geração.


Reedição de um texto publicado em 30/04/2004 no meu outro, já finado, blog. Historinha baseada em fatos reais, com exceção da minha vó ter sido traficante de drogas.

0 comentaram: