08 janeiro 2005

De volta

Após um mês longe de casa, voltei a postar - o há muito prometido artigo sobre Nansen, abaixo.

Minha idéia é fazer pelo menos um artigo por mês, mas até março tenho que parir uma dissertação de mestrado e não sei se conseguirei manter a média. De qualquer forma agradeço aos meus quase duzentos visitantes, segundo o contador sitemeter, provavelmente ainda efeito do link do LLL (ver post Linkada).

Pelas estatísticas que recebo do sitemeter, as visitas aumentam e são relativamente longas - permito-me acreditar que alguém está lendo o que escrevo, além de minha namorada. Mas os comentários ainda são poucos (gentis, mas poucos) - se você se der ao trabalho de ler o que eu escrevi, por favor comente, quero saber se há outros contaminados com o bicho-da-viagem por aí.

Bons ventos.

07 janeiro 2005

Nansen, o último renascentista

Imagine um explorador polar. Não os que habitam as parcas prateleiras de “Viagem & Turismo” nas grandes livrarias comerciais de sua cidade, mas “O” explorador polar, o oráculo de Amundsens, Shackletons e Scotts. Um pioneiro, assim como na exploração, no esporte, campeão nacional diversas vezes em sua modalidade. Agora imagine um cientista, daqueles do século XIX, que revolucionaram o conhecimento de determinada área por detrás de um microscópio tão poderoso quanto os que hoje são vendidos em kits infantis de iniciação à ciência.

Vá um pouco além e pense em um homem de estado, uma mistura de José Bonifácio e Joaquim Nabuco, alguém que tenha participado ativamente do processo de independência de seu país e que posteriormente o serviu como diplomata. Para completar, alguém que tenha servido a uma causa humanitária, um Sérgio Vieira de Melo, e que por isso tenha recebido um Nobel da Paz.

De quantas pessoas estamos falando aqui, afinal? Por incrível que pareça, apenas uma, freqüentemente comparada a um renascentista, dado o currículo variado acima.

Fridjoft Nansen, norueguês, nascido em Oslo (então Christiania) em 1861. Filho de uma família aristocrata, criado em contato com a natureza, Nansen tinha uma promissora carreira acadêmica na zoologia quando começou suas explorações polares, na Groenlândia. Antes mesmo de se formar, Nansen participara de uma viagem em um navio caçador de focas à então desconhecida costa leste da Groenlândia, habitada esparsamente por alguns grupos Inuit, e que viria a ser motivo de controvérsia territorial entre Noruega e Dinamarca.

Após a graduação, em um país que começava a montar sua estrutura acadêmica, Nansen assumiu a curadoria do Museu de Zoologia de Bergen, com apenas 20 anos. Dedicou-se ao estudo do sistema nervoso de algumas espécies de peixes bastante simples e publicou alguns trabalhos hoje considerados clássicos da neurologia, então uma ciência que engatinhava, graças aos avanços proporcionados pelo microscópio. Nansen deu alguns dos primeiros passos na tese que revolucionaria o estudo do sistema nervoso, da independência das células nervosas – ainda não batizadas neurônios. Até então se acreditava que o sistema nervoso era formado por estruturas contínuas, como grandes fios que percorreriam o corpo. Nansen provou que as células nervosas eram unidades independentes – as fibras que fazem a comunicação entre um neurônio e outro recebem hoje seu nome.

Isso já asseguraria sua imortalidade, mas muito mais está por vir. Ao mesmo tempo em que apresentava suas descobertas à comunidade acadêmica e tentava seu doutorado, o rapaz de 27 anos planejava sua primeira grande expedição, a travessia da Groenlândia, de uma costa a outra. O plano era ou revolucionário ou suicida: chegar à deserta costa leste por via marítima e atravessar a calota de gelo que cobre a ilha com esquis até a costa oeste. Todas as expedições anteriores tentaram fazer o caminho inverso e nisso, para Nansen, estava sua falha. De leste a oeste seria o sucesso ou a morte.

Apesar do objetivo ter sido alcançado, não se pode dizer que a expedição foi um sucesso total. Nansen não estava equipado apropriadamente – seu fogão a álcool demorava para derreter a água e gastava combustível demais, as rações não eram balanceadas. O relacionamento entre os 6 membros da expedição também foi complicado: dois deles eram Lapões (povo do norte da Escandinávia) e a barreira cultural com os outros membros era enorme. Nansen era extremamente controlador, não permitia o consumo de estimulantes como café, álcool ou tabaco – o que deixava os outros membros da expedição loucos. Mais de cem anos depois, é quase engraçado imaginar membros de uma expedição tão fisicamente extenuante brigando pelo direito de dar umas baforadas ou uns tragos.

No entanto, a expedição serviu como referência importante para a melhor confecção de equipamentos e comprovou que esquis eram a melhor forma de transporte em regiões polares. Isso é hoje um truísmo, mas temos que ter em mente que estamos falando de uma época sem os materiais leves e industriais hoje aplicados. O esqui estava então dando seus primeiros passos, saindo da área rural da Noruega para tornar-se um esporte, e Nansen era um entusiasta da atividade, conquistando campeonatos e fazendo longas viagens solitárias pelo interior da Noruega. Os esquis eram muito pesados, de madeira, sem qualquer padronização. A junção entre o pé e o esqui era feita com tiras de couro, usava-se apenas um bastão, entre as pernas, para controle.

Tão importante quanto a expedição, Nansen passou 7 meses entre os inuits da costa oeste, enquanto esperava pelo transporte de volta à civilização. Nesse período, Nansen aprendeu a língua, estudou os costumes, as técnicas, trenós e caiaques nativos – uma espécie de antropólogo amador, que via no avanço do cristianismo uma ameaça ao modo de vida local. Nansen tinha uma visão dos esquimós próxima do mito do “bom selvagem”, mas que em compensação se afastava do “fardo do homem branco”, a ideologia racista por trás do avanço imperialista europeu. A aliança entre conhecimento inuit e o uso de esquis caracteriza a nova escola de exploração escandinava que surge a partir de Nansen, em oposição ao uso de tração humana preferido por ingleses e que viria a custar a vida de Scott na Antártica.

Recebido como herói nacional na volta à Noruega, definitivamente mordido pelo bicho-da-viagem e aproveitando sua celebridade, Nansen parte em dois projetos que lhe consumirão pelo resto da vida: o casamento com Eva Sars e a conquista dos pólos da Terra. Um caso claro de megalomania, Nansen ambicionava tão somente ser o primeiro ser humano em ambos os pólos, ártico e antártico.

O primeiro projeto, casamento, concretiza-se bastante rápido. Mas a vida conjugal será marcada por dificuldades de convivência intercaladas por longos períodos de ausência e cartas apaixonadas, além de, freqüentemente, adultério. O relacionamento entre Eva e Nansen era intensamente apaixonado, mas aparentemente suas personalidades tornavam a convivência sufocante.

É no segundo projeto, a conquista dos pólos, que Nansen coloca toda sua energia. Por gerações, grandes potências mandaram expedições para a morte em busca do “Graal ártico”, o Pólo Norte e a Passagem de Noroeste. A tragédia de uma dessas expedições, do Jeannete, daria origem ao plano de Nansen; simples, controverso e corajoso, como todos seus projetos anteriores. O Jeannete partiu mal equipado, acreditando que haveria um oceano livre de gelos no ártico (uma tese corrente à época), pegando o rumo ao pólo a partir do estreito de Bering. Não demorou muito, o barco foi aprisionado pelo gelo. Abandonado após 22 meses de deriva, seus tripulantes partiram em uma desesperada viagem pela sobrevivência, com muitas baixas; o Jeannete seguiu seu rumo como um navio fantasma. Anos mais tarde, partes de seu casco chegaram à costa leste da Groenlândia.

A deriva dos restos do Jeannete de algum ponto ao norte da Sibéria para a costa leste da Groenlândia era evidência de que havia uma corrente marítima que fazia esse percurso. Não crescem árvores na Groenlândia, a matéria prima inuit para construir seus utensílios domésticos era praticamente toda retirada de ursos, morsas e focas (peles, tendões e ossos, principalmente), mas ocasionalmente pedaços de madeira chegavam à costa trazidos pelo mar ou pelo gelo – pedaços que valiam mais do que qualquer coisa, dada sua maleabilidade para construir utensílios.

Nansen estava convencido da existência de uma corrente marítima entre o Estreito de Bering e a Groenlândia. Seu plano era simples: aprisionar-se no gelo com um barco com provisões para alguns anos e seguir o rumo da corrente, à deriva, que o levaria por sobre o pólo. Usar a Natureza, não agir contra ela. O principal problema: como poderia um barco resistir à pressão do gelo?

Tal barco não existia, teria que ser inventado. A idéia era construir um barco com um casco arredondado, que não oferecesse resistência à pressão do gelo, de forma que fosse elevado acima quando pressionado. Mas o barco deveria também ser capaz de viajar grandes distâncias em mar aberto e de manobrar em pequenos espaços. Diversos estaleiros recusaram o serviço, afirmando que o projeto era impossível e que as características exigidas eram mutuamente excludentes.

Colin Archer, dono de um estaleiro naval para navios foqueiros aceitou o desafio, sob as especificações de Nansen. Archer era um pioneiro na construção naval a partir de projetos calculados matematicamente, ao contrário dos projetos baseados na experiência dos construtores, que eram a regra na época. Dois pioneiros, dois inovadores, criaram aquela que até hoje é considerada uma das mais belas obras de engenharia náutica. Batizado de Fram (algo como “à frente” ou “avante”), o barco era tudo que Nansen pediu: resistente, feito com madeiras carinhosamente selecionadas, fácil de manobrar, capaz de viajar grandes distâncias, com o casco arredondado e o leme retrátil, o que o livraria das garras do gelo.

(O barco existe até hoje e tem um museu só para si em Oslo. Este escriba se amaldiçoa por não ter ido ver o Fram quando esteve na Noruega em 1998, muito antes de desenvolver a obsessão por explorações polares.)

Graças a sua notoriedade, Nansen conseguiu fundos para a expedição com relativa facilidade. Conseguir pessoal, no entanto, foi mais complicado – poucos eram os cientistas e marinheiros que estavam dispostos a embarcar em uma expedição de sucesso e duração duvidosos. O equipamento também teve que ser quase que projetado do zero. Nansen desenvolveu trenós mais leves e flexíveis, baseado no design inuit. Esquis, roupas, sacos de dormir foram feitos sob encomenda. Um novo tipo de fogareiro, o Primus, que viria a tornar-se equipamento obrigatório em qualquer expedição a áreas remotas, foi adaptado e usado pela primeira vez. Cães foram encomendados na Sibéria. O Fram contava com um pequeno gerador eólico que garantia um luxo para a época, iluminação elétrica.

Em junho de 1893 o Fram parte para o Ártico, com uma tripulação de 12 homens e provisões para seis anos. Após deixar definitivamente a civilização, o Fram encontra seus primeiros obstáculos no pouco mapeado Mar de Kara, costa norte da Sibéria, antes de colocar a proa para o norte. Preso no gelo, a viagem torna-se monótona, as repetidas atividades relacionadas à pesquisa científica pouco colaborando para a melhora dos ânimos. A viagem do Fram comprovou que o ártico é um oceano congelado, profundo e com poucas ilhas, em contraste à Antártica, um continente. A tese de Nansen quanto à corrente que o levaria através do oceano ártico estava correta. No entanto, ficou claro que a deriva não o levaria por sobre o pólo, o avanço para o norte sendo bastante modesto.

Nansen decide fazer um raide ao pólo, com cães e esquis, acompanhado de um outro tripulante, Hjalmar Johansen. O avanço é penoso, a deriva do gelo para o sul faz com que qualquer progresso para o norte seja risível. Mesmo assim, a dupla estabelece o recorde de mais alta latitude, 86º14’N – um recorde destinado a ser quebrado em poucos anos. Ironicamente, o recorde era apenas alguns poucos quilômetros além do ponto mais ao norte atingido pelo Fram, que seguiu sua deriva.

Talvez mais importante que o recorde, a dupla acabou por desenvolver uma técnica eficiente de viagem polar com cães. Ao invés de tentar controlar a matilha do trenó, este ia com toda a carga enquanto os homens seguiam sobre esqui, um batedor à frente mostrando o caminho e incentivando o avanço dos cães, como se fosse o líder da matilha, o outro esquiador acompanhando o trenó de perto. Essa lição não seria aprendida pelos ingleses, que insistiam na tração humana em suas marchas polares, convencidos da pouca utilidade dos cães, e viria a tornar-se o principal diferencial entre Amundsen e Scott na corrida pelo Pólo Sul.

O retorno mostrou ser mais difícil do que o esperado. As condições do gelo não permitiam a plena utilização dos esquis, tampouco era seguro para uma marcha a pé ou para os caiaques. O relacionamento entre Nansen e Johansen se deteriorava, o que certamente não tornou a marcha mais agradável. Após longos 5 meses, conseguiram chegar a uma ilha da terra de Franz Josef, unindo os caiaques como um catamarã e seguindo a partir da banquisa à vela. Mas ainda estavam longe do retorno à civilização: Nansen e Johansen foram obrigados a invernar na ilha, vivendo de focas e morsas, em um abrigo parcialmente escavado no chão, parcialmente construído com pedras, fechado no topo com neve e uma pele de morsa congelada – o cheiro era como se vivessem dentro do próprio animal.

Nove meses mais tarde, Nansen teve um golpe de sorte e esbarrou em uma expedição britânica, que o levou de volta à Noruega, quase simultaneamente à liberação do Fram do gelo. O “Farthest North” deu notoriedade sem precedentes a um norueguês, toda a Europa sofreu de “Nansen fever”. O retorno à Oslo foi glorioso, estima-se que, literalmente, toda a cidade foi receber o herói nacional – em uma época em que a Noruega precisava desesperadamente de heróis.

Apesar de uma tradição milenar, que remete aos antepassados vikings, a Noruega não era um Estado independente. Havia séculos o controle do país era alternado entre dinamarqueses e suecos. Desde as guerras napoleônicas, quando a Noruega deixou de pertencer à coroa dinamarquesa, o país fazia parte de uma união com a Suécia. Não era uma colônia, os noruegueses tinham autonomia administrativa, com exceção da política externa, e mantiveram seu parlamento, mas este ainda tinha que se reportar ao rei da Suécia – rei que, a propósito, era bastante popular entre noruegueses.

No entanto, a autonomia não era suficiente para o crescente nacionalismo norueguês. Devemos lembrar que a segunda metade do século XIX foi marcada por revoluções nacionalistas por toda a Europa. A independência da Noruega insere-se nesse contexto, mas acabou por ser uma “revolução de cavalheiros”. A partir de uma questão que poderia ser chamada de irrelevante – a destinação das taxas dos consulados conjuntos no exterior, sob controle sueco – criou-se tamanho frenesi nacionalista que o parlamento declarou independência da coroa sueca(mas ainda sim solicitou ao rei que indicasse um sucessor). A tensão cresceu, a Suécia estacionou tropas na fronteira e a ameaça de guerra era real.

Instado pelos separatistas, Nansen usou sua notoriedade internacional na causa pró-independência por meio de uma série de artigos na imprensa, especialmente a britânica, buscando conquistar a opinião pública internacional. Simultaneamente, agia em missão diplomática para conquistar apoio da Dinamarca e da Inglaterra. Com esses países apoiando a causa norueguesa, e após o resultado quase unânime de um plebiscito pró-separação, a Suécia cedeu e chegou a um acordo garantindo a independência da Noruega em outubro de 1905.

Em um continente então majoritariamente monárquico, uma Noruega republicana teria dificuldades em ser reconhecida pela comunidade internacional – a independência teria que vir na forma de uma nova monarquia. Nansen, republicano, se viu em uma situação curiosa: foi secretamente convidado para assumir o trono do país. Recusou a oferta, mas partiu em missão diplomática para convencer um príncipe dinamarquês, Carl, a assumir o trono vago. Carl adotou o nome Haakon VII, em referência aos antigos reis vikings e consolidou a independência norueguesa.

Nansen se viu em um papel completamente novo. De cientista e explorador, passou a figura pública e homem de estado, assumindo a representação diplomática da Noruega em Londres de 1906 a 1908. Londres é um período de intensas mudanças na vida de Nansen, com o repentino falecimento de sua esposa e a renúncia de seu maior sonho, atingir os pólos. A renúncia começa em 1909, quando Peary chega ao Pólo Norte, em meio à controvérsia com Cook – no futuro ficaria comprovado que ambos eram farsantes, mas à época a acalorada disputa tendia à vitória de Peary.

A atividade diplomática absorvia Nansen cada vez mais, começava a ficar claro que seu tempo como explorador estava terminado. Apesar de ter planos detalhados para uma expedição à Antártica com o Fram, Nansen completa a renúncia de seu grande sonho ao ceder o magnífico barco para uma expedição de Amundsen ao Ártico – Amundsen não revelara então que seu verdadeiro objetivo era a Antártica. O fim da corrida entre Amundsen e Scott (que virá a ser tema de outro post) pelo Pólo Sul pôs fim às aspirações polares de Nansen. Outra geração assumia o controle, e Nansen buscava um novo rumo em sua vida.

(Um biógrafo de Nansen, Roland Huntford, em sua missão de desconstrução do mito de Scott – ver “O último lugar da “Terra” – afirma, não sem uma boa dose de maldade, que Nansen teve um caso com a esposa de Scott durante a martirizante jornada do inglês ao pólo)

A Primeira Guerra Mundial vai ter um grande impacto na vida de Nansen. Refletindo o espírito da época, o desespero com a mais sangrenta das guerras aliado à decepção com as promessas das luzes do fim do século XIX, Nansen passa a ser um grande pessimista, descrente na “raça estéril” de diplomatas e políticos que “nos fizeram mais mal do que bem”.

Durante a guerra, Nansen foi aos EUA em missão para tentar assegurar o envio de alimentos para sua terra natal, sem que o país precisasse abrir mão da neutralidade. Então extremamente pobre, a Noruega dependia da importação de alimentos, que havia sido interrompida pelo bloqueio naval da guerra. Após a guerra, com quase 60 anos, Nansen é indicado para representar a Noruega na Liga das Nações, a antepassada da ONU destinada ao fracasso. Nansen encontra aí sua nova missão, a de humanitário.

Colaborando com a Cruz Vermelha, Nansen usou sua fama e a condição de representante de um país neutro para levantar fundos para a repatriação de centenas de milhares de prisioneiros de guerra e para o alívio da grande fome na Rússia (fato habilmente manipulado pela ditadura soviética).

A guerra gerou milhões de banidos, prisioneiros e refugiados, ou simplesmente pessoas cuja nacionalidade não mais existia após o rearranjo das fronteiras européias. Era uma situação nova para a política internacional, milhões de pessoas que deixaram seus países devido à guerra e que não tinham como voltar.

A Liga nomeou Nansen o primeiro Alto Comissário para Refugiados para lidar com o problema. Mesmo sem muito apoio das grandes potências, Nansen novamente colocou sua reputação em auxílio à Cruz Vermelha, levantando fundos para a repatriação de milhares de pessoas, inclusive uma mega operação de troca de populações entre Grécia e Turquia. Para garantir a essas pessoas, muitas delas sem qualquer documentação, o direito de ir e vir e atravessar fronteiras de volta a suas casas, o comissariado criou o “Passaporte Nansen”, um documento temporário amplamente reconhecido e que possibilitava o deslocamento de apátridas e refugiados através das fronteiras. Essa forma de identificação permanece até hoje e ainda leva o nome do norueguês.

Por seu trabalho humanitário, Nansen recebeu o Prêmio Nobel da Paz de 1922. Até o fim da vida, Nansen esteve envolvido, ainda que indiretamente, em operações humanitárias internacionais, mesmo quando deixou a Liga. Faleceu próximo de seu aniversário de 70 anos, em 1930. Estima-se que mais de 100 mil pessoas acompanharam seu caixão pelas ruas de Oslo, seu funeral teve todas as honras de Estado reservadas aos reis e grandes heróis.

É estranho constatar que alguém com tantas realizações, reconhecido por sua excelência em tantos campos, sentia que não havia realizado algo relevante com sua vida, justamente por ter se desdobrado em tantas áreas e não escolhido um único rumo. Nansen talvez seja a personificação do fim do século XIX e início do XX, uma era que viu o auge da fé na ciência e no individualismo, quando a humanidade terminou por desvendar o globo e chegou aos últimos lugares da terra, mas também assistiu ao desmoronamento desses valores com a Primeira Guerra Mundial e a ascensão do comunismo. Logo chegaria um tempo quando feitos similares aos de Nansen não mais poderiam ser alcançados apenas por um único indivíduo. De toda a chamada “Era Heróica” da exploração, Nansen é o patriarca. Seu nome está permanentemente marcado na história de seu país, na neurologia e no auxílio humanitário internacional. O último renascentista.


Para saber mais:
Não encontrei qualquer referência a Fridtjof Nansen em português, mas não é preciso saber norueguês para ler sobre ele. Para escrever esse artigo, basei-me na biografia escrita por Roland HUNTFORD. Nansen - the explorer as Hero. (Abacus, 2001) e em um artigo de Linn RYNE. Fridtjof Nansen - man of many facets, publicado online pelo Ministério das Relações Exteriores da Noruega.