26 novembro 2004

Joshua Slocum (ou Lembrete para soltar as amarras e partir)

A primeira pessoa a fazer uma circunavegação do globo em solitário era um senhor de mais de 50 anos de idade que não sabia nadar e saiu viajando simplesmente porque não tinha muita coisa melhor para fazer com seu recém construído barco de madeira. Sem motor, sem patrocinadores, sem rádio, sem GPS e sem banheiro - apenas sua experiência, uma espingarda e um relógio de lata sem um dos ponteiros (usado para o cálculo da longitude, com uma precisão notável). Faz você pensar sobre toda a parafernália tecnológica de Klinks, Schurmanns & Cia, não?

O Capitão Joshua Slocum, esse ícone da navegação em solitário, nasceu em 1844, trabalhou na marinha mercante desde seus 12 anos e deixou para posteridade algumas das mais deliciosas páginas da literatura náutica no relato de sua viagem ao redor do mundo.

Slocum tinha uma relação curiosa com o Brasil, anterior à viagem que o consagrou. Ao fazer um frete na rota Rio de Janeiro - Buenos Aires, no comando do Aquidneck, carregado de madeira, seu barco encalhou em Paranaguá, sem chances de recuperação. Slocum não teve escolha a não ser pagar a tripulação com o que pudesse ser salvo do barco. Corria o ano de 1888, Slocum se viu sem barco, sem dinheiro, acompanhado de sua (segunda) esposa e de dois filhos, em terra estrangeira. A solução foi construir um barco, que ele batizou de Liberdade, em português mesmo, em homenagem à abolição da escravidão que ocorrera durante sua estada forçada no Brasil. Slocum definia o Liberdade como uma canoa, termo extremamente modesto considerando que a "canoa", que lembrava um junco chinês, o levou com sua família de volta aos EUA em uma viagem sem muitos sobressaltos. Detalhe curioso que dá mais um sentido ao nome da canoa: sua esposa o abandonou depois da intrépida viagem.

No final de 1893, Slocum retornou ao Brasil, agora como piloto da canhoneira Destroyer. A canhoneira tinha sido adquirida pelo governo brasileiro junto aos Estados Unidos para combater a Revolta da Armada - um dos barcos da chamada "esquadra de papelão", portanto. Slocum foi contratado para entregar a mercadoria; conduziu a Destroyer até o porto de Salvador, onde autoridades brasileiras assumiram o comando. O barco naufragou momentos depois, antes que seus novos tripulantes conseguissem sair do porto. Slocum nunca recebeu um tostão pelo serviço.

Ao retornar aos EUA, o capitão ganhou um presente de grego, fruto de uma piada de um antigo colega. Foi assim que o Slocum adquiriu o Spray, de 37 pés, que há muito apodrecia longe d'água. Slocum reconstruiu tábua por tábua o sloop de origem obscura, supostamente um antigo barco que pescava ostras e tinha linhas semelhantes aos pesqueiros do Mar do Norte.

O Spray tinha uma característica interessante: podia manter-se em curso sem dificuldades, mesmo contra o vento, bastando apenas que o leme fosse travado. Isso é hoje banal, com todo o desenvolvimento da tecnologia de construção naval, pilotos automáticos, etc; mas ao final do século XIX, em um barco de madeira, construído literalmente no fundo do quintal, isso era realmente notável. Slocum logo viu que não tinha vocação para pescador e decidiu aproveitar essa característica do Spray ao máximo, na primeira circunavegação em solitário da história.

Partiu de Fairhaven, perto de Boston, em abril de 1895, atravessando o Atlântico em direção a Gibraltar. Para evitar piratas, seguindo o conselho das autoridades locais, o Spray alterou a rota previamente planejada, seguiu para a América do Sul e de lá refez a rota de Magalhães em uma viagem que durou três anos.

Dessa viagem surgiu um dos maiores clássicos da literatura náutica, Sailing alone around the world. Apesar da maioria, curiosamente, considerá-lo apenas um livro infanto-juvenil, Sailing alone... já foi descrito como o melhor livro feito por alguém que não tinha a pretensão de ser escritor. Tendo a concordar com a última opinião: o livro parece um conjunto de crônicas bem humoradas que foram costuradas pela viagem. Há passagens antológicas, minhas favoritas:

· Só por diversão, Slocum gostava de jogar latas vazias n'água. O brilho da lata sob a luz do sol atraía tubarões, que prontamente recebiam um tiro de espingarda assim que abriam a boca para devorar a isca de metal. Deliciosamente incorreto politicamente;

· O então presidente da África do Sul, Kruger, e seu staff tentaram convencer Slocum que o mundo era na verdade plano, e não esférico; sua viagem portanto, era impossível;

· Slocum foi atacado diversas vezes pelos índios da Patagônia em sua travessia do Estreito de Magalhães. Para se defender, o capitão contava com, além de sua fiel espingarda matadora de tubarões, um engenhoso sistema de alarme noturno. Ao se recolher, ele espalhava diversos pregos, desses de prender carpetes, pelo convés. Alguns "selvagens" tiveram o azar de pisar nesses pregos, que fariam "um bom cristão apitar" e os fizeram "uivar como uma matilha de cães";

· Slocum alegava ter a companhia do fantasma do piloto da nau de Colombo, Pinta, que era quem mantinha o curso do Spray estável. Em um trecho quase borgiano do livro, o fantasma surge diante dele pela primeira vez durante uma tempestade, fruto da alucinação derivada do consumo de leite de cabra com ameixas dos Açores. Enquanto Slocum se contorcia de dor de barriga em sua cabine, o piloto da Pinta conduzia o Spray em segurança e caçoava do pobre estado do capitão;

· Ao chegar a Samoa, uma canoa cheia de garotas nativas veio recebê-lo, cantando músicas locais. Seguiu-se o diálogo:

- Talofa Lee (algo como "Amor para você")
- Amor para vocês.
- Você vem sozinho?
- Sim.
- Eu não acredito. Você tinha outros tripulantes, mas os comeu. Por que você veio de tão longe?
- Para ouvir vocês cantar...

O livro tem aquilo que faz valer a pena ler um relato de viagem: não é mera sucessão de locais, datas, velocidades e condições meteorológicas. Slocum não tem pretensões literárias ou científicas, não parte em uma utopia particular, tampouco escreve obrigado pelo compromisso formal com um patrocinador. O relato é leve, rápido, sem preciosismo técnico e cheio de ironia, principalmente auto-ironia em relação ao fato de ser o único membro da tripulação.

Ao final do livro, temos a impressão que a circunavegação do globo é algo realmente simples, desde que você "conheça o mar, e saiba que o conhece, e não esqueça que foi feito para ser navegado". É leitura obrigatória para aqueles que sonham com grandes viagens. Em tempos que proliferam projetos envolvendo centenas de milhares de dólares em equipamentos e patrocinadores, o relato de Slocum é um lembrete de que grandes planos dependem mais de força de vontade e de conhecimento do que de financiamento.

Mordido pelo bicho-da-viagem, que impede suas vítimas de ficar parado no lugar, o Capitão Joshua Slocum partiu em 1909 em mais uma viagem em solitário, com destino ao Rio Orinoco, quando desapareceu em circunstâncias desconhecidas.

Fica sua recomendação , "para jovens contemplando uma viagem, eu diria: partam."


Para saber mais:

A edição brasileira de Sailing Alone... é um pouco difícil de ser encontrada, mas está disponível na Livraria Náutica da Federação Brasileira de Vela e Motor, www.maresbrazil.com.br.

O site
www.eldritchpress.org/js/slocum.htm disponibiliza o texto integral de Sailing alone... assim como os raros The voyage of the Liberdade e Voyage of the Destroyer from New York to Brazil. Há duas edições brasileiras, recomendo a mais atual, com um excelente prefácio de Eduardo Bueno.

25 novembro 2004

Nota inaugural

Este blog é feito por alguém fascinado por histórias de exploração e grandes viagens, especialmente exploração polar e travessias solitárias à vela. Um verdadeiro vício, que me fez praticamente abandonar leituras de ficção para montar uma respeitável e sempre crescente biblioteca de literatura náutica. Culpo, sem pudor, Amyr Klink - meu herói de infância e quem eu gostaria de ser quando crescer. Está lá, no "Paratii - entre dois pólos", uma despretensiosa "Bibliografia sugerida" que me iniciou nisso.

Após ser diagnosticado com esse comportamento obsessivo, resolvi (não sem antes apanhar deveras da template do blog) compartilhá-lo na internet, em busca de outros que também tenham sido mordidos pelo bicho. Decidi alimentar esse hábito, talvez até torná-lo produtivo, quem sabe alguma revista especializada se interessa por uma coluna sobre o tema?

Você encontrará neste site, basicamente, resenhas e comentários de livros e notícias relacionadas com viagens, travessias e explorações. O nome é uma referência à expressão "armchair explorer", com a ressalva que faço minhas viagens deitado em uma maravilhosa rede cearense (ou ainda na rede de computadores, a internet).

Mas o objetivo final não é ficar na rede, é compilar e organizar referências para que um dia eu mesmo saia por aí, nessa radical utopia libertária que é viajar milhares de quilômetros em um barco à vela para estar em algum lugar onde poucos estiveram, só porque está lá. Até lá, espero contaminar outros com o bicho-da-viagem.