06 janeiro 2006

De minhas origens 4: O Efeito Borboleta

Eu gosto da idéia de que estou no controle de meu destino. Não que eu possa fazer qualquer coisa ou mesmo tudo que eu quero, há muito mais no mundo que foge completamente a meu controle, mas gosto da idéia de que o que sou é conseqüência de minhas próprias escolhas, para o bem ou para o mal, e que, portanto, em última instância sou o único responsável por onde e como me encontro. Livre-arbítrio é isso aí, uma responsabilidade da porra...

Mas de vez em quando eu tenho que me render a evidências de que talvez a parcela de minha vida sob meu controle seja muito, muito, muito pequena para fazer qualquer diferença. Fatos importantes têm uma causa última em eventos muito, muito, muito remotos e aparentemente inocentes, dos quais ninguém jamais poderia inferir suas conseqüências no longo prazo. Como a historinha da Teoria do Caos, uma borboleta bate as asas aqui e chove em Pequim. A idéia de conseguir ver essas relações de causalidade se aproxima da onisciência, o que em última instância seria paralisante - imagine se você pudesse calcular absolutamente todas as conseqüências de cada um de seus atos, você os cometeria mesmo assim? Seja lá qual for sua resposta, conseguiria dormir de noite?

Por exemplo, a profissão que exerço é resultado da faculdade que cursei. Nem todo mundo que cursou essa faculdade fez a mesma escolha profissional, mas há uma relação direta entre minha graduação e o concurso que prestei. Essas decisões determinam o fato de eu morar em Brasília e determinarão os lugares onde viverei no futuro próximo. Tomei essas decisões consciente de tais, e outras, conseqüências, mas sei que seria um ser completamente diferente se tivesse permanecido em Santos, por exemplo. Provavelmente feliz, mas totalmente ignorante de meu alter-ego candango, da mesma forma que não consigo imaginar como seria hoje meu alter-ego santista.

Porém, essas escolhas acabaram também por determinar uma parcela considerável de meu círculo de amigos, relacionamentos pessoais e profissionais, enfim, se eu não tivesse escolhido a faculdade e a profissão que escolhi, hoje eu estaria falando, saindo, beijando, bebendo e comendo com outras pessoas. De repente, todo meu destino, cada momento do meu dia-a-dia, é resultado de uma tarde preguiçosa e indecisa lendo o Guia do Estudante.

Mas podemos ir mais longe.

A escolha daquela faculdade em particular somente tornou-se uma possibilidade real porque eu tinha domínio de uma língua estrangeira - a esmagadora maioria da bibliografia do curso era, ainda é, em inglês. Comecei a aprender inglês, no Pink&Blue, antes mesmo deste tornar-se Freedom, na mesma época em que fui alfabetizado (fui alfabetizado duas vezes, nas duas línguas, na verdade).

Tanta precocidade, obviamente, não foi escolha minha, foi decisão de meu velho. Uma parcela considerável de meu destino, portanto, é resultado do dia em que meu velho pegou seu filho remelento no colo e disse para ele "Amanhã, você vai começar a aprender inglês" - eu provavelmente sequer tinha consciência da existência de outras línguas - "Por que, papai?" - "Porque é importante, filho".

Vamos levar esse raciocínio às causas últimas.

O que eu só vim a saber muito tempo depois é que eu não fui colocado em uma escola de inglês "porque é importante". A grande frustração da vida de meu velho é o fato de que ele não fala outra língua - fui levado a aprender inglês a fim de sanar um pouco essa frustração. Pais fazem isso, projetam nos filhos suas falhas e frustrações e tentam criá-los de forma que não as repitam - quase sempre dá errado, mas pais fazem isso.

E a frustração de meu pai decorre de um único evento que se passou no Guarujá.

Meu tio foi o primeiro membro da família a viajar para o exterior. Arranhava o alemão e foi mandado pela empresa para a Deutschlândia. No vôo de volta, sentou-se ao lado de uma jovem alemã que vinha para o Brasil sozinha morar com uns parentes e não sabia absolutamente nada de português. Essa menina se perdeu no aeroporto e, solidário, meu tio a ajudou a achar seus familiares, que ficaram extremamente gratos. A demonstração dessa gratidão veio em um convite para passar um dia na casa de veraneio da família alemã, no Guarujá.

O Guarujá então era o balneário da elite paulista, a patuléia se banhava em Santos. Hoje a elite seguiu para o Litoral Norte, Guarujá é sinônimo de farofada e ninguém tem coragem de se banhar em Santos.

Meu tio chamou meu velho, que tinha carro. Pegaram o fusquinha (cuja buzina soava como "Acorda, Maria Bonita") com suas então respectivas namoradas, ambas filhas do Seu Américo, e tocaram para o Guarujá. Estacionaram debaixo de um Chapéu de Sol, bem longe da enorme e intimidadora casa dos alemães, que tinha de tudo: churrasqueira, piscina, mais quartos do que meu velho podia contar, e até mesmo um campinho de futebol.

Tava a alemãozada toda lá, inclusive a menina perdida. Os alemães foram muito gentis, receberam muito bem os quatro. A conversa rolava animada, com um único porém: meu tio era o único que falava alemão.

"Wie geht's?"
"Mir geht's gut, danke sehr! Das buch ist auf der Tisch!"
"Ach so!"


E meu velho foi se sentindo pequenininho, com uma pontinha de vergonha de não poder participar da conversa, ainda que nunca tivesse tido oportunidade de aprender uma língua estrangeira. Então, a pontinha de vergonha virou humilhação quando o patriarca alemão disse com pouco sotaque:

"Que falta de educação, estamos aqui falando alemão, vocês não falam alemão...desculpem-nos... Vamos falar inglês, assim todo mundo entende"

Meu velho se sentiu um merda. Queria enfiar a cabeça na areia, pensou em se jogar na piscina, saiu de perto da alemãozada, tirou suas sandálias Havaianas e foi bater bola sozinho no campinho. Poucas embaixadinhas depois, para tornar o cenário ainda mais ridículo e humilhante, o velho pisou em um enorme monte de bosta dos rottweilers que cuidavam da segurança do patrimônio teutônico. Foi a gota, ele se mandou, puto da vida, ofendido com a humilhação que ele mesmo, sem querer, se impôs.

Naquele dia, embaixo de um Chapéu de Sol no Guarujá, cujas folhas mais macias foram usadas para tirar os últimos resquícios de cocô de cachorro de entre seus dedos, meu velho fez um juramento solene ao crepúsculo. Ainda que fosse tarde demais para ele, jamais seus filhos passariam por isso. Não, seus filhos seriam poliglotas, aprenderiam inglês, conquistariam o mundo depois, e nunca, nunca teriam que se preocupar com merda de rottweiler entre seus dedos.

Meu destino foi selado naquele fim de tarde. O Efeito Borboleta. Tudo que sou, cada instante de meu cotidiano hoje é, de certa forma, conseqüência daquele instante, fruto do fato de meu pai ter pisado na merda. Sou resultado de um monte de bosta.

4 comentaram:

Lucia Malla disse...

Esse post... é fantástico!! Efeito Borboleta melhor explicado impossível.

Anônimo disse...

CLAP CLAP CLAP!!!!! Dukarái, véi!

Mari Ceratti disse...

Ei! Suas histórias são muito boas!
:o)

Anônimo disse...

Pô felfer, que delícia de história e que massa matar saudades suas no seu blog! Nao conhecia... Fui te chamar no skype e descobri o link!! Amei! Em um mês estarei aì ao vivo para ouvir e contar mais causos!!!!! E tomar malbecs - nada de pinguins!!!!