28 janeiro 2009

Talvez eu esteja com saudades do cerrado...

Pelo que andei lendo pela internet, há uma grande polêmica em Brasília ao redor da tal "Praça da Soberania", o novo projeto de Niemeyer para a Esplanada. Estou longe, sei, mas não posso deixar de dar meu pitaco de candango de adoção.

Juro que não vou fazer nenhuma piada fácil com objetos arquitetônicos fálicos de mau gosto napoleônico. Nem com o ridículo nome "Praça da Soberania", bolivariano pacas, algo de se esperar do último stalinista vivo no mundo.

Considero a praça inevitável, Niemeyer já disse que não abre mão do projeto (arrogante, o velhinho) e o escritório dele tem um bizarro poder de veto sobre qualquer coisa que é construída no Plano Piloto. Até acho válido o argumento "precisamos de mais estacionamento", isso realmente falta na Esplanada.

O que me irrita de verdade é como Niemeyer parece senilmente acreditar na confusão geral de que foi ele quem construiu Brasília. Só isso me explica como pode justificar o projeto apropriando-se de um conceito que JÁ ESTAVA previsto no Plano Piloto de Lúcio Costa, mas para o qual os encarregados de BSB nunca deram muita bola.

O tal "espaço de socialização" já estava previsto no Plano Piloto original, em diversos locais da cidade: a própria Rodoviária, a Praça dos Três Poderes e um parque às margens do Lago. O parque nunca saiu do papel e a orla do lago é a tristeza que sabemos, totalmente privatizada, ocupada por clubes ociosos. A idéia da Praça dos Três Poderes como ponto de encontro foi abandonada, lentamente ocupada por pombais, panteões e "puxadinhos" do Congresso e do Judiciário - ninguém se preocupou, por exemplo, em fazer um estacionamento decente lá perto, que atenderia tanto aos barnabés durante a semana quanto aos transeuntes no fim de semana. A Rodoviária foi entregue aos ambulantes e flanelinhas.

Ou seja, abandonaram pontos importantes do projeto original e agora querem colocá-los em outro lugar, mas nunca se incomodaram (nem se incomodarão) em recuperar as áreas degradadas - e ainda culpam o tombamento da cidade por isso!

É muita cara de pau do arquiteto uva-passa argumentar que a cidade precisa de um estacionamento quando o Museu da República, ali ao lado, não conta com um apropriado. O monopolista da arquitetura de BSB parece se esquecer também que não há "socialização" que agüente estar exposto ao sol do cerrado em uma enorme superfície de concreto que absorve o calor e reflete tanta luz que mal é possível abrir os olhos.

Enfim, por mais que seja inevitável ou até mesmo necessária, por melhor que a construam, acho a Praça da Soberania um injustiça grande com Lúcio Costa. É dizer, "olha, o tiozinho do bigode tinha boas idéias no seu projeto, mas esquece, a gente não executou bem. Então chamamos seu parceiro mais famoso para dar uma ajeitada, só que em outro lugar".

BSB tinha que sair da sombra de Niemeyer e recuperar seu gênio verdadeiro, o injustiçado e muitas vezes esquecido Lúcio Costa. Cansei dos não-candangos darem crédito indevido a Niemeyer pela construção de minha cidade de adoção. BSB é de Lúcio Costa: morar no Plano Piloto é muito bom, por mais que você seja um carioca recalcado com a mudança da capital (superem, por favor). Já trabalhar ou estudar em um prédio de Niemeyer é sempre uma bosta, por mais bonita que seja a maquete.

PS: de um amigo meu "Oscar Niemeyer é a Dercy Gonçalves da arquitetura"

22 janeiro 2009

Luto

Descansa, Tio, descansa....vamos sentir tua falta.

09 janeiro 2009

Crônica de uma viagem ao Cabo Horn

Essa é uma versão extendida de um artigo que publiquei na Edição 29, de abril de 2008, da Revista V (sim, podem me acusar de nepotismo) - em excelente companhia, a Mariana Ximenes estava na capa. A viagem foi realizada no fim de 2007 e incluiu ainda uma visita a glaciares do lado chileno da Terra do Fogo, o que ficou de fora do artigo. Foi a primeira vez que publiquei algo em papel, gostei da experiência, mas, por alguma razão que ainda não sei bem explicar, desde a publicação do artigo deixei o blog praticamente às moscas. Para retomar o Crônica, nada melhor que começar de onde se parou.

“Relaxe, é o fim do mundo” – diz o slogan local estampado no moderno aeroporto de Ushuaia. Como muitas mecas do turismo, Ushuaia cresce rápida e desordenadamente, as estancias mais próximas da cidade foram loteadas para construção de hotéis – a terra vale mais assim do que como pasto para ovelhas, me explica o taxista. Milhares de turistas convergem no verão para o ponto mais austral da Argentina, alguns para longas caminhadas nos bosques da região, mas a enorme maioria proveniente dos cruzeiros marítimos que lotam o pequeno porto local, parada obrigatória a caminho da Antártica ou dos canais da Terra do Fogo. Hordas de aposentados vestindo agasalhos idênticos de “expedições extremas” circulam pelas pequenas avenidas comprando souvenirs, brincando de explorador polar, em busca de um carimbo em seu passaporte que prove que foram mais longe do que seus colegas de carteado.

Enquanto isso, o jornal local, com o nada criativo nome de Diário del Fin del Mundo, mostra na capa um acidente de trânsito sem vítimas fatais e, na página 3, fotos de cachorros disponíveis para adoção no canil da cidade. Para os locais, o fim do mundo não deixa de ser apenas um fim de mundo.

O objetivo de minha viagem é de Ushuaia ir um pouco mais além, até onde o vento faz a curva, o Cabo Horn, 55°59′ S, 067°16′ W. Localizado em território chileno, o Horn é o último pedacinho da América. Entre ele e a Antártica há apenas um mar sem fim, açoitado por violentos ventos e ondas que circundam a Terra sem obstáculos. As lendas náuticas dizem que o Diabo tem morada por essas ilhas, de onde controla enormes correntes que arrastam navios para a costa. São lendas justificáveis: nos estertores da navegação comercial à vela, quando o temido cabo era a única rota entre o Atlântico e Pacífico, inúmeros naufrágios garantiram a reputação do lugar - e muitas empresas de navegação contribuiram para essa reputação ao naufragar seus obsoletos veleiros de olho no dinheiro do seguro. Hoje, é um dos altares sagrados da vela, um desses lugares sobre os quais qualquer velejador fala com venerável respeito, como um alpinista fala do Everest.

A idéia é simples: já que estou aqui, tão longe, por que não ir um tantinho mais? Está logo ali.

***

Minha parca experiência náutica, porém, impõe sérias limitações. Se o Horn é o Everest da vela, um sherpa vai me carregar nas costas. O mérito da travessia é todo do guia. O táxi me deixa no pequeno e enferrujado pier do clube náutico local, onde estão pouco mais de uma dúzia de veleiros preparados para altas latitudes.

O comandante que me levará até o Horn é Alejandro “Mono” Da Milano em seu veleiro, o Mago del Sur. Uma pequena lenda na Argentina, Mono Da Milano é famoso não só por uma proverbial resistência ao mau tempo e ao frio, adquirida após percorrer milhares de milhas náuticas em regatas e travessias oceânicas, mas também por ter sido integrante da seleção argentina de rugby, aquele “esporte de animais, disputado por cavalheiros” onde marmanjos parrudos disputam uma bola oval no tapa, sem os capacetes e outras frescuras do futebol americano. Um senhor calvo com uma farta barba branca, de sorriso quase infantil, que contrasta com seu tamanho descomunal. Poderia ser o modelo no qual a Coca-Cola se inspirou para o Papai Noel ou a figura ao lado da expressão “lobo do mar” em uma enciclopédia náutica.

Sou recebido no Mago del Sur com mate, panetone e uma hipnotizante conversa sobre tudo ao mesmo tempo. “Deixei o mundo das regatas porque me cansei dos patrones, os donos dos veleiros, que apareciam momentos antes da largada dando ordens, mesmo sem saber o que estavam fazendo”. Estou diante de um misantropo, “depois de muito tempo navegando sozinho, a gente se torna um pouco intolerante às boludezes das pessoas...”

Mate e panetone. “O problema dos castores na Terra do Fogo é que são uma espécie exótica, introduzida pelo homem, sem predadores na região. Suas represas destroem os bosques, uma praga”. Brinco que talvez fosse o caso de introduzir ursos, os predadores dos castores, para controle da população de roedores. Mono sorri e diz “é, boa idéia, controlaria a população de homens também.”

Suzana, imediata do Mago (além de cozinheira, contadora, relações públicas e mãezona), está no notebook tentando baixar a previsão meteorológica. Mono torce o nariz, e olha para o céu buscando a forma e a direção das nuvens. Justamente quando Mono dissertava sobre a invasão da vida privada proporcionada pelas formas modernas de comunicação, meu celular toca. Quase jogo o aparelho ao mar, para não contrariar esse urso misantropo.

Ainda no porto me dou conta que a atitute "o Horn é logo ali" não é a mais adequada para estas latitudes, mas talvez um pouco do conhecimento náutico do Mono me seja transmitido pela bombilla, quem sabe? Mais mate e panetone.

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Comparado à leveza e elegância dos veleiros franceses de alumínio que dividem o cais, o Mago é um trator. “Não gosto desses barcos de plástico de hoje, cheios de frescuras, barcos para exibir nas marinas, não para navegar. Cresci com barcos de madeira e aço”, alerta o Mono. Quase 17 metros de aço, armação em cutter, mastro fracionado, quilha retrátil – desenhado à medida a partir das exigências do comandante. Nesta viagem somos cinco no total, os outros dois passageiros são velejadores valencianos, o que garante um grande conforto a bordo, já que as instalações alcançam para 10 pessoas. Os cabos e as ferragens são robustos, organizados de maneira simples. A eletrônica reduzida ao mínimo necessário para essas latitudes – exceto pelo radar para navegação sem visibilidade, é um barco menos provisto de gadgets do que a maioria dos veleiros que navegam no Lago Paranoá. Talvez um barco seja mesmo reflexo do dono.

Primeira parada: Puerto Williams, Ilha Navarino, Chile, do outro lado do Canal de Beagle. Um barco que transportava munições na Primeira Guerra Mundial antes de ser adquirido pela marinha chilena, o Micalvi, encalhado em uma caleta protegida, faz as vezes de Club Nautico. Williams é a principal base naval chilena da região, que foi objeto de disputa entre Argentina e Chile até os anos 80. Poderia ser o equivalente chileno de alguns rincões da Amazônia brasileira, onde a única presença do Estado são as Forças Armadas. Para defender é necessário ocupar e povoar, hacer pátria. Não é uma cidade, mas há um razoável número de casas de civis. As casas nas ruas mais acima da colina são todas iguaizinhas, branquinhas, obviamente destinadas aos oficiais, com gás engarrafado para aquecimento. Há avisos que é proibido fotografar nas imediações das instalações militares. Quanto mais próximas ao mar, as casas diminuem de tamanho e compartem o terreno com absurdas quantidades de lenha.

Na praça central há um albergue, alguns restaurantes e duas ou três empresas de ecoturismo – “além do fim do mundo” é o slogan local. Não há adultos nas ruas, apenas cachorros vadios e crianças brincando, imunes ao frio e ao vento constante. Cruzo com um casal adolescente de mãos dadas – devem ser os adolescentes mais felizes da ilha.

Os únicos adultos parecem ser as três autoridades que vão até o Micalvi para a necessária papelada de entrada do Mago e dos passageiros. Educados e cordiais, carimbam uma dúzia de papéis, checam os passaportes e exigem nossa assinatura em um termo de isenção de responsabilidade, onde atestamos estar cientes de que estamos em uma embarcação que não é destinada ao transporte de passageiros e que as autoridades locais não se responsabilizam por nosso bem estar. Em outras palavras, como a atividade de charter na região não é regulamentada, a lógica burocrática impõe a assinatura de um documento dizendo que um veleiro não é um barco. O ritual é um mal necessário para navegar na zona, para desgosto do Mono, que vê nisso apenas uma maneira de garantir emprego a inúteis burocratas e militares. “Esse termo de isenção é uma estupidez, quem navega por aqui sabe onde está se metendo. Nós, os latinos, temos um problema com a liberdade, com assumir responsabilidade por nossas escolhas”, filosofa o Mono. No fundo, ele é um romântico liberal-anarquista.

Tantos carimbos nos passaportes chocam um pouco nossos colegas europeus. Acostumados às facilidades da União Européia, não entendem como a simples travessia de um canal natural pode gerar tanta papelada. Mas aqui não rege a lógica da integração, parece ainda estar vigente a hipótese de conflito. Em 1978, a Argentina chegou a enviar sua esquadra para batalha pela posse de três ilhas na boca do Canal de Beagle – Picton, Lennox e Nueva. Uma tempestade (que muitos consideram intervenção divina) atrasou o conflito tempo suficiente para que fosse aceita a mediação do Papa, que posteriormente decidiu a disputa em favor do Chile, confirmando um laudo arbitral anterior; um plebiscito na Argentina finalmente acatou a decisão e fechou a questão em 1984.

Mas a quase guerra deixou suas marcas. Até hoje a navegação é restrita em diversos pontos da região – não é permitido, por exemplo, circunavegar a Ilha Navarino, rota que seria mais rápida e segura para qualquer barco partindo de Ushuaia para o Horn. Os veleiros sofrem marcação cerrada pelo VHF, são constantemente interpelados por estações de rádio, de ambos os lados do Canal, perguntando por ecos tangos e alfas, para angústia do Mono: “Acho que essas ilhas já estão povoadas demais...”.

A Ilha Navarino poderia estar totalmente integrada a Ushuaia e beneficiar-se de seu intenso fluxo de visitantes, mas a atitude de desconfiança que persiste em algumas autoridades de ambos os lados do canal impede qualquer iniciativa de integração. Não, Puerto Williams deve permanecer isolada, salvo pelo contato com a distante Punta Arenas. O meio ambiente das ilhas ao sul do Canal de Beagle está, assim, em estado prístino, completamente protegido dos efeitos da urbanização e do turismo de massas – ainda que pelos motivos errados.

***

Quando a burocracia e o tempo permitem, partimos de Williams, saímos do canal rumo ao sul finalmente. Pasamos por Puerto Toro, o povoado mais austral do planeta, na costa leste de Navarino; um posto avançado da Marinha chilena que dá apoio a pescadores na época da centolla, a mãe de todos os caranguejos. Fora da época de pesca é uma cidade fantasma, onde ainda existem trincheiras de 1978. Refundada durante a disputa pelo Beagle, a marinha chilena fez um levantamento dos mortos em naufrágios na região e plantou uma cruz para cada um deles no cemitério de Puerto Toro. Uma cidade de fantasmas, para ocupar e povoar.

“Minha mulher não gosta de velejar, navegar para ela é uma vida sórdida”, se queixa um tripulante. “Troque de mulher”, ordena taxativamente o capitão.

Saímos do Paso Picton e entramos na Baía Nassau, deixando as ilhas da discórdia para trás, a nordeste. Golfinhos, lobos marinhos e albatrozes se revezam escoltando o Mago. É, navegar é uma vida sórdida...


Mono sai do conforto de sua cama vestindo apenas uma cueca furada para comandar uma manobra, enquanto todos os tripulantes estão com suas roupas impermeáveis. Todos a seus postos. Fico responsável pelas burdas. A burda é um estai volante, um cabo que reforça a sustentação do mastro no lado onde ele é mais exigido, a barlovento, o lado de onde sopra o vento. É necessário soltar uma burda e caçar, puxar, a outra durante a mudança de um bordo para outro. Sem a burda, um vento mais forte pode partir o mastro. Resumindo, a burda é importante. Mas tem a maldita tendência a ficar enganchada em qualquer coisa durante a manobra, justamente quando você mais precisa dela.

À medida que a retranca permite, caço o cabo, meu esforço sendo multiplicado pela catraca, mas não com a velocidade exigida para um barco projetado para um jogador de rugby. Um rugido açoita meus ouvidos, não é o vento, é o Mono: “Caça essa buuurda!! Caça ou vai me arrebentar o mastro!!”. Recebo um chega para lá e vejo ser aplicada à catraca toda a força que um dia segurou um time de rugby no cangote. Mono me olha com um tanto de condescendência e diz “os barcos têm que ser tratados com raiva, muita gentileza causa avarias”.

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Buscamos abrigo para a noite na Caleta Maxwell, já no arquipélago que abriga o Horn. Fundeamos em meio aos cachiyuyos, algas enormes, elásticas e resistentes. Baixamos à terra para esticar um pouco as pernas. A vegetação da Terra do Fogo acompanha a inospitalidade do lugar. Árvores, apenas em áreas mais protegidas do vento, a regra é a turba: uma vegetação rasteira que não se fixa ao solo diretamente, mas sobre metros de matéria orgânica em lenta decomposição; é como andar sobre uma enorme esponja, a pele de um único e enorme organismo vivo. A turba é a Amazônia em bonsai.

Maxwell hoje é um lugar desabitado, mas um dia abrigou yaganes, um dos povos originários da Terra do Fogo. Mono tem um respeito reverencial pelos yaganes – as águas que cruzávamos a vela e motor em um confortável barco de aço eram navegadas por esse povo nômade, no braço, em frágeis canoas feitas com cascas de árvores, em busca de aves, mexilhões e lobos marinhos. Mantinham-se aquecidos e secos cobrindo o corpo com gordura, uma ou outra pele animal, e mantendo fogueiras permanentemente acesas (segundo uma versão, a origem do nome Terra do Fogo estaria nesse hábito). Missionários protestantes e salesianos vieram até o fim do mundo para convertê-los. Os yaganes foram um dos únicos povos ditos primitivos que eram monoteístas - só não era o monoteísmo certo. Sua conversão foi, assim, mais dócil. A gordura e as peles foram logo substituídas por roupas ocidentais que, ao absorver umidade, expunham os yaganes ao frio e, assim, baixavam ainda mais sua resistência aos germes que acompanham a civilização ocidental. Foram docilmente dizimados em apenas duas gerações graças a epidemias de doenças banais como o sarampo.

Cabo Horn. Clique para visitar as fotos da viagem no Picasa, incluindo os Ventisqueros Chilenos, que ficaram de fora do artigo

De Maxwell finalmente partimos para a principal perna da viagem, rumo ao Horn. O tempo está ótimo. Ótimo, nessas águas desabrigadas e expostas, é: sem chuva, com ondas baixas e ventos de “apenas” 30 nós (ou 55km/h, velocidade que já cancela algumas regatas no Rio da Prata). Não é hora para improvisos, nem brincadeiras, o ambiente a bordo é sério, Mono ao leme, velas rizadas, todos com arneses de segurança. Os cabos que ligam os arneses aos mosquetões (que, por sua vez, nos prendem ao barco) foram costurados pacientemente pelo próprio Mono – estamos, em todos os aspectos, em suas mãos.

Seguimos o vento, de oeste para leste, e logo estamos a través do Horn, seu paredão de aproximadamente 100m de altura parcialmente coberto por nuvens. O Horn é cinza. Apenas os albatrozes, permanentemente planando, passando a centímetros das ondas, dão um pouco de vida ao lugar. Tudo à vista nas proximidades, rochedos e ilhas, inspira desolação, isolamento, assombro. Não é lugar para homens, apenas para albatrozes.

O vento nos leva rapidamente embora, mal sentimos o tempo passar, logo estamos fundeados na pequena baía onde está a escada que leva ao farol da ilha; é muito pouco abrigada, mas o clima permite. Além do farol, no Horn há uma impressionante estrutura de aço em forma de albatroz, uma pequena pedra gravada em homenagem aos que perderam a vida dobrando o cabo, uma antiga capela de madeira e uma enorme bandeira chilena que o vento rasgou pela metade, fibra por fibra, sem tomar conhecimento de soberanias humanas na região. É lugar para albatrozes.

Há um faroleiro com sua família – esposa, um bebê de colo e uma menina em idade pré-escolar. Praticamente todos os faróis do mundo, hoje, são automáticos, mas a marinha chilena mantém, em turnos de um ano, um faroleiro aqui com sua família, haciendo pátria. Ocupar e povoar.

A casa do faroleiro é contígua ao farol, completamente nova. A esposa do faroleiro carimba os passaportes dos visitantes em sua sala de estar, onde assinamos o livro de registro de nossa passagem. A esposa e a menina são alegres, falantes, não devem receber muitas visitas. Contam-me que perderam o pluviômetro na última tempestade, quando soprou 101 nós. Apesar de frio, preferem o inverno, não sopra tanto, é mais confortável – mas não têm tantas visitas.

Pergunto curioso o que eles criam no curral que vejo a uns 500m, sobre uma colina. O faroleiro ri, “Não, a gente não cria nada aqui não. Aquilo são minas antipessoais, por causa dos problemas que tivemos com a Argentina em 1978. Tem outros campos em Lennox, Picton e Nueva. É mais fácil cercar do que remover porque são de plástico”. Diz isso impassível, com um sorriso enorme, enquanto sua filha puxa meu casaco, tentando me convencer a brincar com sua boneca de pano.

***

De volta ao Mago, onde o Mono aguarda pacientemente seus eufóricos tripulantes. Somos cap-horniers agora, de acordo com a tradição náutica, podemos usar um brinco de ouro e apoiar o pé na mesa dos oficiais, temos direito a não tirar o chapéu diante do rei da Espanha e contamos com a sobrenatural capacidade de cuspir contra o vento. Só não podemos nos confundir e cuspir no rei. Somos cap-horniers. Rimos, comemos torrones valencianos com sabor de realização, brindamos a uma bem sucedida e segura travessia.

Mono pergunta, com seu sorriso de criança, ainda com o copo levantado,“então, como se sentem agora que são cap-horniers? Diferentes?”.

Somente aí caiu a ficha para valer. Qual o significado de dobrar o Horn? Não foi uma aventura, não dobramos nada, não cruzamos de um oceano a outro – fomos trazidos aqui a passeio, não há mérito nenhum em ser passageiro. Minha viagem não é muito mais do que a realização de uma fantasia infanto-juvenil, visitar um lugar mitológico, quase imaginário - horrorizado, lembrei-me dos aposentados em Ushuaia. Dobrar o Horn não deveria ser um cruzeiro de verão, não foram turistas que transformaram este lugar em lenda. Deve ser triste para um navegador do cacife do Mono ver o Horn ser transformado em destino turístico, da mesma forma que alpinistas sérios lamentam a banalização do Everest. Há uma enorme distância entre ler sobre um lugar e ver por si mesmo, mas desde aí há um abismo que separa o que é realmente viver esse lugar. O brinde teve gosto de profanação.