Mostrando postagens com marcador Patagônia e Terra do Fogo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Patagônia e Terra do Fogo. Mostrar todas as postagens

09 janeiro 2009

Crônica de uma viagem ao Cabo Horn

Essa é uma versão extendida de um artigo que publiquei na Edição 29, de abril de 2008, da Revista V (sim, podem me acusar de nepotismo) - em excelente companhia, a Mariana Ximenes estava na capa. A viagem foi realizada no fim de 2007 e incluiu ainda uma visita a glaciares do lado chileno da Terra do Fogo, o que ficou de fora do artigo. Foi a primeira vez que publiquei algo em papel, gostei da experiência, mas, por alguma razão que ainda não sei bem explicar, desde a publicação do artigo deixei o blog praticamente às moscas. Para retomar o Crônica, nada melhor que começar de onde se parou.

“Relaxe, é o fim do mundo” – diz o slogan local estampado no moderno aeroporto de Ushuaia. Como muitas mecas do turismo, Ushuaia cresce rápida e desordenadamente, as estancias mais próximas da cidade foram loteadas para construção de hotéis – a terra vale mais assim do que como pasto para ovelhas, me explica o taxista. Milhares de turistas convergem no verão para o ponto mais austral da Argentina, alguns para longas caminhadas nos bosques da região, mas a enorme maioria proveniente dos cruzeiros marítimos que lotam o pequeno porto local, parada obrigatória a caminho da Antártica ou dos canais da Terra do Fogo. Hordas de aposentados vestindo agasalhos idênticos de “expedições extremas” circulam pelas pequenas avenidas comprando souvenirs, brincando de explorador polar, em busca de um carimbo em seu passaporte que prove que foram mais longe do que seus colegas de carteado.

Enquanto isso, o jornal local, com o nada criativo nome de Diário del Fin del Mundo, mostra na capa um acidente de trânsito sem vítimas fatais e, na página 3, fotos de cachorros disponíveis para adoção no canil da cidade. Para os locais, o fim do mundo não deixa de ser apenas um fim de mundo.

O objetivo de minha viagem é de Ushuaia ir um pouco mais além, até onde o vento faz a curva, o Cabo Horn, 55°59′ S, 067°16′ W. Localizado em território chileno, o Horn é o último pedacinho da América. Entre ele e a Antártica há apenas um mar sem fim, açoitado por violentos ventos e ondas que circundam a Terra sem obstáculos. As lendas náuticas dizem que o Diabo tem morada por essas ilhas, de onde controla enormes correntes que arrastam navios para a costa. São lendas justificáveis: nos estertores da navegação comercial à vela, quando o temido cabo era a única rota entre o Atlântico e Pacífico, inúmeros naufrágios garantiram a reputação do lugar - e muitas empresas de navegação contribuiram para essa reputação ao naufragar seus obsoletos veleiros de olho no dinheiro do seguro. Hoje, é um dos altares sagrados da vela, um desses lugares sobre os quais qualquer velejador fala com venerável respeito, como um alpinista fala do Everest.

A idéia é simples: já que estou aqui, tão longe, por que não ir um tantinho mais? Está logo ali.

***

Minha parca experiência náutica, porém, impõe sérias limitações. Se o Horn é o Everest da vela, um sherpa vai me carregar nas costas. O mérito da travessia é todo do guia. O táxi me deixa no pequeno e enferrujado pier do clube náutico local, onde estão pouco mais de uma dúzia de veleiros preparados para altas latitudes.

O comandante que me levará até o Horn é Alejandro “Mono” Da Milano em seu veleiro, o Mago del Sur. Uma pequena lenda na Argentina, Mono Da Milano é famoso não só por uma proverbial resistência ao mau tempo e ao frio, adquirida após percorrer milhares de milhas náuticas em regatas e travessias oceânicas, mas também por ter sido integrante da seleção argentina de rugby, aquele “esporte de animais, disputado por cavalheiros” onde marmanjos parrudos disputam uma bola oval no tapa, sem os capacetes e outras frescuras do futebol americano. Um senhor calvo com uma farta barba branca, de sorriso quase infantil, que contrasta com seu tamanho descomunal. Poderia ser o modelo no qual a Coca-Cola se inspirou para o Papai Noel ou a figura ao lado da expressão “lobo do mar” em uma enciclopédia náutica.

Sou recebido no Mago del Sur com mate, panetone e uma hipnotizante conversa sobre tudo ao mesmo tempo. “Deixei o mundo das regatas porque me cansei dos patrones, os donos dos veleiros, que apareciam momentos antes da largada dando ordens, mesmo sem saber o que estavam fazendo”. Estou diante de um misantropo, “depois de muito tempo navegando sozinho, a gente se torna um pouco intolerante às boludezes das pessoas...”

Mate e panetone. “O problema dos castores na Terra do Fogo é que são uma espécie exótica, introduzida pelo homem, sem predadores na região. Suas represas destroem os bosques, uma praga”. Brinco que talvez fosse o caso de introduzir ursos, os predadores dos castores, para controle da população de roedores. Mono sorri e diz “é, boa idéia, controlaria a população de homens também.”

Suzana, imediata do Mago (além de cozinheira, contadora, relações públicas e mãezona), está no notebook tentando baixar a previsão meteorológica. Mono torce o nariz, e olha para o céu buscando a forma e a direção das nuvens. Justamente quando Mono dissertava sobre a invasão da vida privada proporcionada pelas formas modernas de comunicação, meu celular toca. Quase jogo o aparelho ao mar, para não contrariar esse urso misantropo.

Ainda no porto me dou conta que a atitute "o Horn é logo ali" não é a mais adequada para estas latitudes, mas talvez um pouco do conhecimento náutico do Mono me seja transmitido pela bombilla, quem sabe? Mais mate e panetone.

***

Comparado à leveza e elegância dos veleiros franceses de alumínio que dividem o cais, o Mago é um trator. “Não gosto desses barcos de plástico de hoje, cheios de frescuras, barcos para exibir nas marinas, não para navegar. Cresci com barcos de madeira e aço”, alerta o Mono. Quase 17 metros de aço, armação em cutter, mastro fracionado, quilha retrátil – desenhado à medida a partir das exigências do comandante. Nesta viagem somos cinco no total, os outros dois passageiros são velejadores valencianos, o que garante um grande conforto a bordo, já que as instalações alcançam para 10 pessoas. Os cabos e as ferragens são robustos, organizados de maneira simples. A eletrônica reduzida ao mínimo necessário para essas latitudes – exceto pelo radar para navegação sem visibilidade, é um barco menos provisto de gadgets do que a maioria dos veleiros que navegam no Lago Paranoá. Talvez um barco seja mesmo reflexo do dono.

Primeira parada: Puerto Williams, Ilha Navarino, Chile, do outro lado do Canal de Beagle. Um barco que transportava munições na Primeira Guerra Mundial antes de ser adquirido pela marinha chilena, o Micalvi, encalhado em uma caleta protegida, faz as vezes de Club Nautico. Williams é a principal base naval chilena da região, que foi objeto de disputa entre Argentina e Chile até os anos 80. Poderia ser o equivalente chileno de alguns rincões da Amazônia brasileira, onde a única presença do Estado são as Forças Armadas. Para defender é necessário ocupar e povoar, hacer pátria. Não é uma cidade, mas há um razoável número de casas de civis. As casas nas ruas mais acima da colina são todas iguaizinhas, branquinhas, obviamente destinadas aos oficiais, com gás engarrafado para aquecimento. Há avisos que é proibido fotografar nas imediações das instalações militares. Quanto mais próximas ao mar, as casas diminuem de tamanho e compartem o terreno com absurdas quantidades de lenha.

Na praça central há um albergue, alguns restaurantes e duas ou três empresas de ecoturismo – “além do fim do mundo” é o slogan local. Não há adultos nas ruas, apenas cachorros vadios e crianças brincando, imunes ao frio e ao vento constante. Cruzo com um casal adolescente de mãos dadas – devem ser os adolescentes mais felizes da ilha.

Os únicos adultos parecem ser as três autoridades que vão até o Micalvi para a necessária papelada de entrada do Mago e dos passageiros. Educados e cordiais, carimbam uma dúzia de papéis, checam os passaportes e exigem nossa assinatura em um termo de isenção de responsabilidade, onde atestamos estar cientes de que estamos em uma embarcação que não é destinada ao transporte de passageiros e que as autoridades locais não se responsabilizam por nosso bem estar. Em outras palavras, como a atividade de charter na região não é regulamentada, a lógica burocrática impõe a assinatura de um documento dizendo que um veleiro não é um barco. O ritual é um mal necessário para navegar na zona, para desgosto do Mono, que vê nisso apenas uma maneira de garantir emprego a inúteis burocratas e militares. “Esse termo de isenção é uma estupidez, quem navega por aqui sabe onde está se metendo. Nós, os latinos, temos um problema com a liberdade, com assumir responsabilidade por nossas escolhas”, filosofa o Mono. No fundo, ele é um romântico liberal-anarquista.

Tantos carimbos nos passaportes chocam um pouco nossos colegas europeus. Acostumados às facilidades da União Européia, não entendem como a simples travessia de um canal natural pode gerar tanta papelada. Mas aqui não rege a lógica da integração, parece ainda estar vigente a hipótese de conflito. Em 1978, a Argentina chegou a enviar sua esquadra para batalha pela posse de três ilhas na boca do Canal de Beagle – Picton, Lennox e Nueva. Uma tempestade (que muitos consideram intervenção divina) atrasou o conflito tempo suficiente para que fosse aceita a mediação do Papa, que posteriormente decidiu a disputa em favor do Chile, confirmando um laudo arbitral anterior; um plebiscito na Argentina finalmente acatou a decisão e fechou a questão em 1984.

Mas a quase guerra deixou suas marcas. Até hoje a navegação é restrita em diversos pontos da região – não é permitido, por exemplo, circunavegar a Ilha Navarino, rota que seria mais rápida e segura para qualquer barco partindo de Ushuaia para o Horn. Os veleiros sofrem marcação cerrada pelo VHF, são constantemente interpelados por estações de rádio, de ambos os lados do Canal, perguntando por ecos tangos e alfas, para angústia do Mono: “Acho que essas ilhas já estão povoadas demais...”.

A Ilha Navarino poderia estar totalmente integrada a Ushuaia e beneficiar-se de seu intenso fluxo de visitantes, mas a atitude de desconfiança que persiste em algumas autoridades de ambos os lados do canal impede qualquer iniciativa de integração. Não, Puerto Williams deve permanecer isolada, salvo pelo contato com a distante Punta Arenas. O meio ambiente das ilhas ao sul do Canal de Beagle está, assim, em estado prístino, completamente protegido dos efeitos da urbanização e do turismo de massas – ainda que pelos motivos errados.

***

Quando a burocracia e o tempo permitem, partimos de Williams, saímos do canal rumo ao sul finalmente. Pasamos por Puerto Toro, o povoado mais austral do planeta, na costa leste de Navarino; um posto avançado da Marinha chilena que dá apoio a pescadores na época da centolla, a mãe de todos os caranguejos. Fora da época de pesca é uma cidade fantasma, onde ainda existem trincheiras de 1978. Refundada durante a disputa pelo Beagle, a marinha chilena fez um levantamento dos mortos em naufrágios na região e plantou uma cruz para cada um deles no cemitério de Puerto Toro. Uma cidade de fantasmas, para ocupar e povoar.

“Minha mulher não gosta de velejar, navegar para ela é uma vida sórdida”, se queixa um tripulante. “Troque de mulher”, ordena taxativamente o capitão.

Saímos do Paso Picton e entramos na Baía Nassau, deixando as ilhas da discórdia para trás, a nordeste. Golfinhos, lobos marinhos e albatrozes se revezam escoltando o Mago. É, navegar é uma vida sórdida...


Mono sai do conforto de sua cama vestindo apenas uma cueca furada para comandar uma manobra, enquanto todos os tripulantes estão com suas roupas impermeáveis. Todos a seus postos. Fico responsável pelas burdas. A burda é um estai volante, um cabo que reforça a sustentação do mastro no lado onde ele é mais exigido, a barlovento, o lado de onde sopra o vento. É necessário soltar uma burda e caçar, puxar, a outra durante a mudança de um bordo para outro. Sem a burda, um vento mais forte pode partir o mastro. Resumindo, a burda é importante. Mas tem a maldita tendência a ficar enganchada em qualquer coisa durante a manobra, justamente quando você mais precisa dela.

À medida que a retranca permite, caço o cabo, meu esforço sendo multiplicado pela catraca, mas não com a velocidade exigida para um barco projetado para um jogador de rugby. Um rugido açoita meus ouvidos, não é o vento, é o Mono: “Caça essa buuurda!! Caça ou vai me arrebentar o mastro!!”. Recebo um chega para lá e vejo ser aplicada à catraca toda a força que um dia segurou um time de rugby no cangote. Mono me olha com um tanto de condescendência e diz “os barcos têm que ser tratados com raiva, muita gentileza causa avarias”.

***

Buscamos abrigo para a noite na Caleta Maxwell, já no arquipélago que abriga o Horn. Fundeamos em meio aos cachiyuyos, algas enormes, elásticas e resistentes. Baixamos à terra para esticar um pouco as pernas. A vegetação da Terra do Fogo acompanha a inospitalidade do lugar. Árvores, apenas em áreas mais protegidas do vento, a regra é a turba: uma vegetação rasteira que não se fixa ao solo diretamente, mas sobre metros de matéria orgânica em lenta decomposição; é como andar sobre uma enorme esponja, a pele de um único e enorme organismo vivo. A turba é a Amazônia em bonsai.

Maxwell hoje é um lugar desabitado, mas um dia abrigou yaganes, um dos povos originários da Terra do Fogo. Mono tem um respeito reverencial pelos yaganes – as águas que cruzávamos a vela e motor em um confortável barco de aço eram navegadas por esse povo nômade, no braço, em frágeis canoas feitas com cascas de árvores, em busca de aves, mexilhões e lobos marinhos. Mantinham-se aquecidos e secos cobrindo o corpo com gordura, uma ou outra pele animal, e mantendo fogueiras permanentemente acesas (segundo uma versão, a origem do nome Terra do Fogo estaria nesse hábito). Missionários protestantes e salesianos vieram até o fim do mundo para convertê-los. Os yaganes foram um dos únicos povos ditos primitivos que eram monoteístas - só não era o monoteísmo certo. Sua conversão foi, assim, mais dócil. A gordura e as peles foram logo substituídas por roupas ocidentais que, ao absorver umidade, expunham os yaganes ao frio e, assim, baixavam ainda mais sua resistência aos germes que acompanham a civilização ocidental. Foram docilmente dizimados em apenas duas gerações graças a epidemias de doenças banais como o sarampo.

Cabo Horn. Clique para visitar as fotos da viagem no Picasa, incluindo os Ventisqueros Chilenos, que ficaram de fora do artigo

De Maxwell finalmente partimos para a principal perna da viagem, rumo ao Horn. O tempo está ótimo. Ótimo, nessas águas desabrigadas e expostas, é: sem chuva, com ondas baixas e ventos de “apenas” 30 nós (ou 55km/h, velocidade que já cancela algumas regatas no Rio da Prata). Não é hora para improvisos, nem brincadeiras, o ambiente a bordo é sério, Mono ao leme, velas rizadas, todos com arneses de segurança. Os cabos que ligam os arneses aos mosquetões (que, por sua vez, nos prendem ao barco) foram costurados pacientemente pelo próprio Mono – estamos, em todos os aspectos, em suas mãos.

Seguimos o vento, de oeste para leste, e logo estamos a través do Horn, seu paredão de aproximadamente 100m de altura parcialmente coberto por nuvens. O Horn é cinza. Apenas os albatrozes, permanentemente planando, passando a centímetros das ondas, dão um pouco de vida ao lugar. Tudo à vista nas proximidades, rochedos e ilhas, inspira desolação, isolamento, assombro. Não é lugar para homens, apenas para albatrozes.

O vento nos leva rapidamente embora, mal sentimos o tempo passar, logo estamos fundeados na pequena baía onde está a escada que leva ao farol da ilha; é muito pouco abrigada, mas o clima permite. Além do farol, no Horn há uma impressionante estrutura de aço em forma de albatroz, uma pequena pedra gravada em homenagem aos que perderam a vida dobrando o cabo, uma antiga capela de madeira e uma enorme bandeira chilena que o vento rasgou pela metade, fibra por fibra, sem tomar conhecimento de soberanias humanas na região. É lugar para albatrozes.

Há um faroleiro com sua família – esposa, um bebê de colo e uma menina em idade pré-escolar. Praticamente todos os faróis do mundo, hoje, são automáticos, mas a marinha chilena mantém, em turnos de um ano, um faroleiro aqui com sua família, haciendo pátria. Ocupar e povoar.

A casa do faroleiro é contígua ao farol, completamente nova. A esposa do faroleiro carimba os passaportes dos visitantes em sua sala de estar, onde assinamos o livro de registro de nossa passagem. A esposa e a menina são alegres, falantes, não devem receber muitas visitas. Contam-me que perderam o pluviômetro na última tempestade, quando soprou 101 nós. Apesar de frio, preferem o inverno, não sopra tanto, é mais confortável – mas não têm tantas visitas.

Pergunto curioso o que eles criam no curral que vejo a uns 500m, sobre uma colina. O faroleiro ri, “Não, a gente não cria nada aqui não. Aquilo são minas antipessoais, por causa dos problemas que tivemos com a Argentina em 1978. Tem outros campos em Lennox, Picton e Nueva. É mais fácil cercar do que remover porque são de plástico”. Diz isso impassível, com um sorriso enorme, enquanto sua filha puxa meu casaco, tentando me convencer a brincar com sua boneca de pano.

***

De volta ao Mago, onde o Mono aguarda pacientemente seus eufóricos tripulantes. Somos cap-horniers agora, de acordo com a tradição náutica, podemos usar um brinco de ouro e apoiar o pé na mesa dos oficiais, temos direito a não tirar o chapéu diante do rei da Espanha e contamos com a sobrenatural capacidade de cuspir contra o vento. Só não podemos nos confundir e cuspir no rei. Somos cap-horniers. Rimos, comemos torrones valencianos com sabor de realização, brindamos a uma bem sucedida e segura travessia.

Mono pergunta, com seu sorriso de criança, ainda com o copo levantado,“então, como se sentem agora que são cap-horniers? Diferentes?”.

Somente aí caiu a ficha para valer. Qual o significado de dobrar o Horn? Não foi uma aventura, não dobramos nada, não cruzamos de um oceano a outro – fomos trazidos aqui a passeio, não há mérito nenhum em ser passageiro. Minha viagem não é muito mais do que a realização de uma fantasia infanto-juvenil, visitar um lugar mitológico, quase imaginário - horrorizado, lembrei-me dos aposentados em Ushuaia. Dobrar o Horn não deveria ser um cruzeiro de verão, não foram turistas que transformaram este lugar em lenda. Deve ser triste para um navegador do cacife do Mono ver o Horn ser transformado em destino turístico, da mesma forma que alpinistas sérios lamentam a banalização do Everest. Há uma enorme distância entre ler sobre um lugar e ver por si mesmo, mas desde aí há um abismo que separa o que é realmente viver esse lugar. O brinde teve gosto de profanação.

06 maio 2008

Dias cinzentos...

A Patagônia está cinza:



E, inferno astral, o Gordo voltou da guardia com uma infecção que se desenvolveu em uma pneumonia generalizada, bastante séria, passei a madrugada velando o bichinho, com medo do pior. Volta a pergunta: como é que há irresponsáveis nesse nesse mundo que aceitam responsabilidade sobre outros seres humanos?

PS 12/5: o Gordo está bem melhor, ainda tosse, mas está praticamente curado. Obrigado a todos pela preocupação, mas quero ver na próxima vez que eu anunciar aqui que estou doente se vou receber tantos emails....

02 janeiro 2008

Feliz 2008


Desde Ushuaia.

24 dezembro 2007

GOING SOUTH PT



23 dezembro 2007

Ushuaia


Vista do muelle afasyn. Ary Rongel ao fundo.

21 junho 2007

Desapareció un lago en el sureste de Chile

Hein!? Cuma?

Coméquié?! Repete! En serio?!

Terreno fértil para lendas urbanas. Nada de OVNIs, meus palpites são que vão acusar o malvado Gringo Tompkins, porque afinal ele quer roubar toda a água da Patagônia, ou vão dizer que isso prova a conexão subterrânea entre os lagos argentinos e chilenos, derrubando o conceito de divisores de águas e dando origem à mais nova crise de limites entre os dois países.

20 abril 2007

Uma breve análise econômica

Semana passada, como talvez tenham acompanhado na imprensa, houve um protesto do sindicato dos caminhoneiros argentino aqui em frente à repartição. Aparentemente a Quilmes pretendia cancelar um contrato de distribuição que deixaria muita gente sem emprego, os caminhoneiros ameaçaram parar, secando os bares da cidade, e vieram protestar aqui na frente da repartição porque supostamete a Quilmes pertence a uma malvada multinacional brasileira, que por sua vez pertence a outra malvada multinacional belga.

Como minha sala é virada para a rua, foi uma manhã de trabalho bem interessante, dava a sensação de estar digitando no meio de uma torcida organizada "sooooooooooy camionero! es un sentimiento, no puede paraaaaaaaarrr!!!!". Há uma interessante e nem sempre lícita relação entre as torcidas organizadas e os movimentos sociais profissionalizados, vulgo piqueteros, aqui. "Que hace tu papá, Juanito?" "Toca bombo en la banda del grémio y en la hinchada". Pergunta relevante: se os ditos "movimentos sociais" alugam profissionais para protestar e levar suas demandas à sociedade e às autoridades, suas manifestações gozam de legitimidade?

Intervenção presidencial, tudo resolvido, não vai faltar brahminha nas esquinas portenhas.

E aí, para comemorar (é, você leu corretamente, para comemorar), o grémio resolve parar a cidade hoje, botou os caminhões na rua em procissão ao estilo trio-elétrico, como se precisasse algo mais do que a chuva para parar o trânsito de BsAs. Ainda bem que eu moro a uma quadra da repartição.

Esse apoio aos movimentos sociais profissionalizados é uma das grandes bases de sustentação do governo K. Há que se dar crédito a um presidente que assumiu, ainda que democraticamente, sem nenhuma legitimidade (graças a uma frustrada manobra suja do opositor no segundo turno) e agora tem índices de aprovação massacrantes. A Argentina recuperou os níveis econômicos de 1998 recentemente e agora, oficialmente, está crescendo além do efeito "quicar no fundo do poço".

O problema é que essa política vem acompanhada de uma intervenção estatal na economia que é quase uma caricatura dos anos 80. Controle de preços "voluntário", com direito a maquiagem dos índices de inflação e pressão de funcionários do baixo escalão para que os estabelecimentos comerciais a serem pesquisados para determinar os índices inflacionários baixem os preços. Don Corleone só oferece proteção se puder dar pitaco no preço da laranja também. (ainda bem que o Ipea não sofre pressão política, né?)

O resultado, é claro, é desabastecimento, mercado negro, etc. Não atingiu ainda Microcentro, Barrio Norte, Recoleta, Palermo, mas déjà vu. Quando se torna insustentável, explode e a batata quente fica para o sucessor.

Ou seja, vai quebrar. Pode demorar um pouco, mas a Argentina voltará ao poço. Provavelmente não até o fundo, como em 2001, mas volta. Não sei quando, talvez nem esteja mais em BsAs, mas volta. O engraçado é que isso é instintivamente aceito pelos locais como normal, cíclico, tão certo como a chegada do Natal - enquanto isso dá-lhe dólar embaixo do colchão!

Talvez então eu compre uma fazendinha na Patagônia e vire ermitão de vez.

12 fevereiro 2007

Inveja saudável

Alguém disse aí que a inveja é o maior dos elogios. No momento tenho inveja de Bruce Chatwin, viajante profissional e escritor - muito antes de viajantes profissionais terem uma prateleira só para eles na livraria do shopping. Estou lendo seu In Patagonia, de 1977, cujo efeito colateral é uma vontade louca de voltar para o lejano sur, vagabundear kerouacnamente pela Ruta 40.

E eu aqui tranquilo e satisfeito com este blog, um blog de viagens e relatos de viagens (é bem verdade que tão intercalados com outras bobagens que virou um blog de bobagens), quando pego esse livro....

Me deu aquela inveja saudável, desejo de emulação, mas também uma sensação de insignificância, de que não há muito mais que inventar em matéria de relatos de viagem. Chatwin é definição do que é um bom autor de livros de viagens: vai muito além de descrições de lugares, é também uma jornada pessoal do autor e acaba por influenciar a relação do leitor com os destinos visitados (uma resenha bacana da obra dele aqui). São esses elementos, na minha opinião, que tornam os livros de Amyr Klink muito bons (em especial os primeiros dois, ainda não li o último), enquanto os livros dos Schurmann são apenas medíocres.

In Patagonia não só relata a viagem de Chatwin, ele relata também a sua viagem pela Patagônia hoje. Tudo que você vai ver está lá no livro: as paisagens, os lugares, os personagens, os momentos históricos, até os fósseis. Todo site e publicação turística sobre o sul da Argentina que caíram em minhas mãos parecem ter plagiado Chatwin.

Alguns viajantes são famosos por terem marcado definitivamente o imaginário coletivo sobre determinados lugares, ou seja, ajudaram a criar os rótulos que seriam para sempre associados a esses lugares. Marco Polo e o Oriente, Vespúcio e a América, Humbolt e os Trópicos, Cook e a Polinésia. Guardando algumas proporções, Chatwin fez o mesmo na Patagônia.

Vai lá na livraria do shopping, acho que vi uma edição em português.

04 fevereiro 2007

Reinauguração

Este blog anda bem pouco aproveitado ultimamente...passei dos 11.000 hits e nem me dei conta. Deixei de postar por um bom tempo, mas estou resolvido a não matar este espaço, a manter o blog funcionando, ainda que de forma pouco regular, e seguir dividindo minhas andanças com quem está longe.

Aproveitei então esta tarde ociosa sem acesso à TV e, tendo como desculpa a obrigatória migração do Blogger para o Google, reformulei o template, refiz as categorias (finalmente o Blogger tem categorias!!), apaguei alguns posts que não me faziam mais sentido...serviu para recordar muita coisa boa e reativar a idéia de dividí-las por este meio eletrônico.

De certa forma, minha ausência da blogosfera pode ser interpretada como um bom sinal, de que minha presença no mundo real vem sendo requisitada...

Terminadas as aulas no Isen, passei a me sentir útil trabalhando em período integral. Não me entendam mal, não é que a experiência no Isen tenha sido negativa, longe disso. Só estava cansado de ser aluno. Não cansado de estudar, cansado de ser aluno - de ficar o dia inteiro em uma sala de aula fingindo estar prestando atenção. Depois de tantos anos de preparação acadêmica, finalmente estou devolvendo alguma coisa para a sociedade, fazendo algo e não só sendo bombardeado com informação....

(De tantos estudos, só uma certeza: o que se aprende, se aprende apesar da escola, não por causa dela...não importa o número de provas que se faça, só fica na cabeça o que se gosta e o que se usa....)

E andei viajando bastante também. Apesar de ter tudo anotadinho em meu caderno de viagens, ficarei devendo os prometidos posts sobre a Patagônia - passem no meu Flickr, há fotos incríveis lá. Basta dizer que é dos lugares mais lindos que tenho notícia e que pretendo voltar.

Pelo próximo mês estarei no cerrado, chamado a serviço. A gente se cruza.

04 novembro 2006

Boas lembrancas

Estou exatamente no mesmo cybercafeh no fim do mundo onde oito meses atrás recebi a confirmacao definitiva de que nao voltaria a BSB, ficaria pelo caminho em BsAs...me deu uma sensacao boa: duas vezes em Ushuaia no mesmo ano, algo correto devo estar estou fazendo...

Tirei o dia para ficar à toa enquanto nao chega a hora de embarcar de novo para o Prata. Depois de uma semana de viagem, estou bem cansado, nao serah agora que vcs lerao sobre esta viagem, tenho muitas notas para fazer antes de publicar algo aqui. Por enquanto fica soh o registro de que o lejano sur é um lugar fantástico, me dá ganas de voltar, e o conselho: brasileiros, esquecam Brasiloche, o melhor da Argentina está ao sul do Rio Negro.

26 outubro 2006

Due South

Faz tempo que não faço nenhum post, pura preguiça, porque tenho anotações para vários. De qualquer forma, vai ficar para depois, parto amanhã outra vez para o lejano sur, acompanhando meus colegas argentinos em sua viagem de fim de curso - Patagônia na conta da viuda.

Durante os próximos oito dias passarei pelo Glaciar Perito Moreno, pelo Monte Fitz Roy, ou El Chalten no dialeto dos locais e, depois de uma breve escala em Río Gallegos, de volta aonde o vento faz a volta, o fim do mundo, Ushuaia. Quem ficou curioso pode ter um gostinho consultando www.parquesnacionales.gov.ar, visitando as páginas do Parque Nacional Glaciares e o Parque Nacional da Terra do Fogo. Não sei se terei muita chance de postar no caminho, mas prometo que tento. De qualquer forma, fico devendo um relato completo da Patagônia, com fotos, ainda em novembro - me cobrem.

26 fevereiro 2006

Quer fazer Deus rir? Faça planos.

Meu plano era ir para um certo estágio no exterior, mas isso foi tirado de mim. Meu plano era "viver felizes para sempre", mas quando um não quer, dois não permanecem casados. Meu plano era tirar umas férias depois de minha viagem à Antártica em um veleiro dobrando o Cabo Horn, mas terei que postergar isso.

Agora que é oficial, posso falar abertamente, ao invés de ficar deixando dicas subliminares no blog (O mundo muda. A gente muda...). No dia 13/2, quando estava em Punta Arenas prestes a embarcar para a Antártica, o Instituto Rio Branco me ofereceu uma das vagas para estudar no Instituto del Servicio Exterior de la Nación, Isen, a academia diplomática argentina.

Graças ao link via satélite de Ferraz, pude entrar no circuito - seria tragicamente engraçado voltar ao Brasil e descobrir que fui preterido porque não pude ser contatado. Com a ajuda dos amigos (obrigado a todos), esclareci que poderia sim me apresentar em Buenos Aires na data exigida, 1º de março, quarta-feira de cinzas, bastaria mudar minha passagem e abrir mão de meus planos de férias (o que não foi feito sem dor).

Obtido o aval da chefia, passei ainda alguns dias em ansioso suspense por uma confirmação oficial, que chegou finalmente na tarde da última sexta-feira, véspera de Carnaval. Nesse tempo todo postando, estive tenso, com a cabeça em BSB e BsAs e os pés aqui. Em algumas poucas horas embarco em um avião a caminho de Buenos Aires, onde antes de ir para algum hotel o taxista vai me levar para comprar um terno, uma gravata e um par de sapatos, pois só levo comigo meu mochilão austral.

Tudo ocorreu tão rápido, confesso que estou com frio na barriga. Tenho calafrios só de imaginar o que me espera para organizar minha mudança à distância. Não sei se foi a decisão correta, mas sei que, fosse qual fosse, eu ficaria imaginando a alternativa..."e se?". Foi uma decisão complicada porque não queria sair nessas condições, quase um fugitivo, de onde estou trabalhando agora, mas me pareceu uma oportunidade boa demais para deixar passar e, felizmente, minha chefa compreendeu isso (adoro essa mulher).

Abracei a mudança. Vocês não fazem idéia de como estou feliz aqui, eu só lamento não poder dividir este momento de forma apropriada com meus amigos. Eu preferia contar isso tudo pessoalmente, de preferência em meio a alguns chopps no Bar Brasília, ou pelo menos por email, individualmente, mas parti de BSB sem minha agenda de contatos e não sei quando terei oportunidade de retornar ao cerrado. Espalhem a notícia por favor, abraços e beijos a todos, e tomem umas por mim. Assim que eu tiver um endereço e un teléfono, vocês serão devidamente informados.

Bom Carnaval para vocês, o Explorador vai levar sua rede para Buenos Aires.


<------------->


Estamos prestes a entrar no terceiro mês de 2006. Me diverti saindo todas as noites de janeiro - caí na putaria, caí de beber e caí de amores. Em fevereiro, fiz uma viagem para a Antártica, minha obsessão, encarei uma travessia pela Passagem do Drake e fui até o Fim do Mundo, a Terra do Fogo. Em março, começo a viver em Buenos Aires. Só falta o Santos ser campeão.

Tudo conspirou a meu favor, mesmo meus momentos mais difíceis... Assim acabarei virando um fatalista, que será, será....Talvez eu tenha mesmo nascido virado para a Lua, como diz minha tia. Ou talvez tanta coisa boa seja alguma forma de compensação cósmica pela sacanagem que me foi feita em 2005. Se for o caso, já está pago, com juros - e quem saiu no lucro nessa história certamente fui eu.

Quem sabe, talvez eu até vá agradecer a falecida...

25 fevereiro 2006

Dia 14. Museus. Trem do Fim do Mundo. Parque Nacional.

Passei o resto do dia anterior zanzando pela cidade, perdido de propósito. Cheguei a uma parte da cidade nada charmosa, que provavelmente só nao é uma favela porque o pessoal morreria de frio.

O ponto alto foi a descoberta, indicaçao do oráculo Lonely Planet, de uma livraria especializada em livros e DVDs sobre exploraçao antártica...doeu no bolso, mas cortei alguns itens da minha wishlist da Amazon.

O ponto baixo do passeio foi na volta descobrir que Amyr Klink esteve no Ary Rongel, visitando o Comandante por algumas horas. Ele está a bordo do Nordnorge, cruzeiro antártico que partia enquanto eu recebia a notícia, perdi a oportunidade de tietar meu herói em seu próprio habitat.

Museus

Visitei o Museu do Fim do Mundo e o Museu Yagán. Lugares extremamente pequenos, dá para ver tudo em menos de 15 minutos cada, mas jeitosos. No primeiro deparei-me com uma informaçao frustrante. Em parte, a mitologia náutica em torno destas paragens e do Cabo Horn é resultado de um esquema de golpe em companhias de seguro. Com a revoluçao náutica trazida pelo vapor e, depois, pelo óleo, aproveitando-se do alto índice de naufrágios e do isolamento desta regiao, companhias de tranporte e carga mandavam seus capitaes darem sumiço nas embarcaçoes à vela em naufrágios forjados nestas bandas. Simplesmente nao havia como verificar o sinistro e o dinheiro do seguro era utilizado para renovar a flotilha. Prefiro a lenda.

Os Yagán eram os nativos da parte sul da Terra do Fogo. Ushuaia quer dizer "Baía voltada para o poente" em sua língua. Eram poucos, alguns milhares e nao deixaram muitos vestígios de sua passagem pela Terra. Nômades, nao possuíam escrita, sequer faziam pinturas rupestres (as camisetas vendidas aqui com símbolos indígenas sao de povos da Patagônia), e tudo o que se sabe deles hoje deve-se aos missionários ingleses e salesianos que primeiro se estabeleceram por aqui. Sucumbiram às doenças européias e à fome trazida pela escassez de baleias e lobos-marinhos, seu principal alimento, que por sua vez foram dizimados por baleeiros e caçadores de foca. Construíam impressionantes canoas de cortiça que as mulheres, as únicas que sabiam nadar, manejavam com destreza. Nao tinham âncoras, amarravam as canoas nas enormes algas (kelps) que crescem por aqui. Os homens cuidavam do arpao e as crianças mantinham o fogo aceso nas canoas.

Nao eram assim tao miseráveis como supôs Darwin ao ver um bando de índios gordos e pelados nessas terras frias. Nao usavam roupas (salvo um manto de pele de lobo-marinho em dias mais frios) porque roupa significa acumulo de umidade e, conseqüentemente, desconforto. Era muito mais fácil manter-se aquecido e impermeável cobrindo o corpo de gordura e ficando perto do fogo.

O fogo era elemento constante e vital na cultura Yagán. Mantinham alguma brasa sempre acesa, mesmo em suas canoas, para aquecimento e para evitar o trabalho de acender uma nova fogueira a cada parada (lembram daquele filme insuportável e onipresente nas escolas do segundo grau, "A Guerra do Fogo"?). Usavam também como forma de comunicaçao com as canoas distantes a caçar. Quando Magalhaes chegou ao extremo sul da América pela primeira vez, viu diversas dessas fogueiras, mas nao viu gente - daí Terra do Fogo.

Trem do Fim do Mundo

Você sabe que entrou em uma armidilha para turistas quando se vê cercado de aposentados e há uma gravaçao em alto-falantes com explicaçoes em japonês e coreano sobre o lugar.

Assim como Punta Arenas e Hobart, os outros pontos de entrada da Antártica, Ushuaia surgiu de uma colônia penal criada no intuito de ocupar e reivindicar estas terras para o Estado. A única forma de comunicaçao da cidade com o mundo exterior era pelo mar, mas havia uma linha férrea de 25km ligando o presídio a lugar nenhum. Todo dia, saía uma locomotiva transportando presos para cortar lenha nos bosques em torno da linha, para servir de combustível para os geradores e aquecedores do presídio e da cidade. Hoje, o presídio é uma base militar e os últimos restaurados 7Km da linha férrea sao uma armadilha para turistas, uma versao melhorada do trenzinho da finada Cidade da Criança de Sao Bernardo que percorre um bosque de tocos mortos. O jeito mais caro de entrar no Parque Nacional da Terra do Fogo.

Parque Nacional da Terra do Fogo

Fugi o mais rápido possível da armadilha e me botei a caminhar pelo parque. É uma reserva ambiental restrita, há poucas trilhas, bem demarcadas, a percorrer. Escolhi a Senda Costera, 6,5Km margeando a Baía Ensenada até quase a fronteira com o Chile, umas 3 horas de caminhada. Deu para cansar.

Trechos de bosque bastante fechado intercalados por praias de cascalho com uma vista incrível da Cordilheira ao fundo, para sentar, apreciar e refletir. O frio e a neve do inverno impedem que a matéria orgânica se decomponha completamente, em alguns trechos dá para ver que nao se está pisando em solo, mas em um enorme emaranhado do que um dia foram folhas, galhos e troncos. É como andar em um imenso xaxim, com uma generosa e grudenta camada de lama nas áreas onde a água se acumula. Estou com os joelhos doendo, mas valeu.

24 fevereiro 2006

Dia 13. Muelle Afasyn

Sendo o Fim do Mundo, Ushuaia atrai muitos viajantes hard core. Passei a manha no pier (Muelle) do clube AFASyN. Clube eh gentileza minha, ha uma casinha e um pier mal cuidado. Mas nesse pier, a maior concentracao de veleiros com mais de 40 pes que jah vi, muitos com mais de 50.

Sao cruzeiristas que escolheram a Terra do Fogo para ficar uns tempos ou gente voltando da Antartica ou em transito de suas voltas ao mundo. Dava para ouvir o pessoal conversando dentro dos navios, barulho de talheres, criancas brincando - verdadeiros lares flutuantes. Troquei uma ideia com uns tiozinhos aposentados ingleses dando uma voltinha pela America do Sul em um Swan 52 com um jogo completo de catracas eletricas. Assim eh facil, diria provavelmente Slocum.

Mas nao sao soh veleiros que fazem parte da populacao de viajeros de Ushuaia. Assim como em Punta Arenas, ha um cybercafe em cada esquina, mochileiros abundam, assim como endinheirados que param por aqui em seus mega cruzeiros antarticos. O que me surpreendeu, no entanto, foi um caminhao estacionado perto do Afasyn, um Unimog com uma familia inteira de franceses lah dentro, inclusive um bebe de colo. Estao dando a volta ao mundo, na metade da etapa America Latina. Il reste encore l'Afrique...

Ah...o bicho-da-viagem...

Noite do dia 12. Grito de Carnaval no Fim do Mundo

Bate culo, bate culo...

E o Funk Carioca chega até o Fim do Mundo...

23 fevereiro 2006

Dias 10, 11 e 12. O Velho Corsário.

It figures. O dia que vou embora é o dia que faz o melhor tempo...muito sol, muitas fotos panorâmicas, um papo amigo com uma foca de weddel e um quase tropeço (literalmente) em uma foca caranguejeira. Após a cerimônia de passagem de funçao ("Eu ASSUMO"...uia!), embarquei no Ary Rongel para a lendária Passagem do Drake.

A zona de alta pressao que mencionei antes se estabilizou sobre o Drake, criando o "Drake penteado": condiçoes estáveis, tempo bom, ventos e ondas vindo sempre da mesma direçao. No caso, pegamos o vento e as ondas de través. Força 5, quase 6, 20 nós, ondas de dois a cinco metros. Fichinha para o Drake, mas o navio estava muito leve devido à descarga de óleo para a Estaçao e balançava muito. Claro que mareei, vomitei pouco, mas o desconforto era constante, nao dava disposicao para nada, nem para comer. O Spa Ary Rongel, faça uma passagem pelo Drake e emagreça. Andava constantemente com um saquinho plástico no bolso para emergências. Para meu consolo, quase todos passaram mal, uns mais, outros menos, com exceçao dos veteranos.

Todo mundo se pergunta como astronautas fazem para ir ao banheiro no espaço. Bobagem. Gravidade zero e aspirador de pó. Pergunte-se como sao realizadas as funçoes de higiene mais banais em uma passagem do Drake. Isso sim é aventura. Mijar no Drake é como mijar do alto de um brinquedo de parque de diversoes. Tomar banho, só ricocheteando nas paredes, tomando cuidado para nao se queimar no aquecedor. Nao tive coragem de fazer a barba, poderia cortar alguma artéria. Imagine-se dormindo sobre uma gangorra com duas crianças gordas e sádicas nas pontas e terá uma idéia de como eu dormi.

Mas isso foi só nas primeiras 24 horas, depois nao mareei mais. Esqueçam dramin e vertix, o melhor remédio para enjôo é encarar o balanço, dançar junto e tentar dormir, passei um bom tempo na cama acostumando meu labirinto. Ontem subi ao passadiço, como se nunca tivesse enjoado na vida, para assistir um pôr-do-sol espetacular - sol descendo no mar, mar sem fim à minha volta, somente algumas pequenas aves por testemunha. E eu fico me perguntando como elas fazem para chegar aqui e por que, por que...

O Drake é uma lenda. Junto do Cabo Horn, é o equivalente ao Monte Everest do marinheiro. Há almirantes que nunca fizeram a passagem e me dá um senhor orgulho de ter sido minha primeira travessia - o Drake nao me fez abandonar meus planos de vela, só fez reforçar.

Hoje de manha estávamos já no Canal de Beagle, lindo de verdade, quase tao selvagem quanto da vez que Fitzroy e Darwin aqui estiveram. Passamos pelas ilhas da discórdia entre Chile e Argentina. Uma baleia deu as caras, mas eu infelizmente perdi o espetáculo. Atracamos antes do esperado, havia até uma bandinha militar para receber o Ary Rongel. Fizemos a travessia em pouco menos do que 50 horas, desenvolvendo velocidades entre 10 e 13 nós.

E aqui estou, no fim do mundo, Ushuaia.