30 maio 2005

Amyr Klink - DVD Mar Sem Fim

Juro que não é jabá. Mas se você tem algum interesse por este blog, provavelmente vai querer comprar o DVD Mar Sem Fim, documentário sobre Amyr Klink da Conspiração Filmes, já exibido na GNT e agora em edição especial da revista Viagem & Turismo.

29 maio 2005

Shackleton

O “intermitente” do banner aí em cima bem que poderia ser substituído por “quase nunca”, mas voltei. Voltei após terminar minhas obrigações com o mestrado – mas bem que o mestrado poderia logo terminar suas obrigações com os alunos, liberando a gente para cuidar da vida. De qualquer forma, voltei, até meu próximo sumiço. Voltei porque vi algo que doeu: Shackleton na pilha de auto-ajuda da livraria local.

Shackleton-mania

Shackleton é pop. Quando Caroline Alexander editou um livro e organizou uma exposição a partir das fotos de Frank Hurley, o fotógrafo do Endurance (a foto acima é dele), deu origem inadvertidamente à chamada “Shackleton-mania” no Reino Unido, com desdobramentos em outros países (ver referências bibliográficas ao final do artigo). Um efeito colateral desse fenômeno foi o ressurgimento no mercado editorial de obras relacionadas à chamada “Era Heróica” da exploração – de certa forma, este blog é parte desse efeito colateral. Se hoje há algumas prateleiras dedicadas exclusivamente a Viagens & Explorações na livraria local, isso se deve, em parte, à Shackleton-mania.

Mas a Shackleton-mania tem um lado medíocre. O mercado editorial de livros de administração e auto-ajuda viu na fantástica história de uma malfadada expedição antártica uma lição de liderança. Barabim, barabum, há livros ensinando a “maneira Shackleton” de administrar pessoas, ao lado de “Quem roubou meu queijo” e outras mediocridades.

Folheei um desses livrinhos. Uma tristeza. Intercalando com uma versão resumida da história, caixas de texto contendo obviedades ululantes e saltitantes como “trabalhe em equipe”.

Inquestionavelmente, esse irlandês foi o maior líder que já pisou na Antártica, talvez um dos maiores líderes que já saíram do Império Britânico. Seus subordinados, salvo exceções que eram exemplarmente punidas, o seguiam com uma confiança cega, literalmente, até o Inferno. A confiança era justificável, pois Shackleton jamais perdeu um homem sob seu comando direto – iam ao Inferno, mas voltavam vivos e ainda pediam para ir de novo. É, provavelmente, o único explorador da “Era Heróica” a não ter mortes em seu currículo. Sem dúvida, é esse aspecto que levou supostos gurus da administração a ver nele um exemplo de liderança, essa palavrinha mágica sem precisão conceitual que alimenta montanhas de publicações como Você S.A. e Exame. A suprema ironia é que Shackleton dificilmente pode ser considerado um bom administrador.

Shackleton foi um grande líder. Não é à toa o adágio antártico criado por Cherry-Garrard (cito de memória): “para uma viagem segura, Amundsen; para uma expedição científica, Scott; mas, se você estiver em apuros, ajoelhe-se e reze por Shackleton”. Porém, dificilmente Shackleton pode ser considerado um modelo a ser seguido por empresários e empreendedores: ele jamais conseguiu alcançar os objetivos traçados por ele mesmo para seus projetos.

Não me refiro só a expedições antárticas. O homem faliu em todo negócio que abriu, quebrou sua empresa de cigarros e vivia atolado em dívidas referentes a suas expedições. Um grande líder, um grande explorador antártico, certamente – mas qualquer empresa teria demitido um funcionário com o histórico de Shackleton. A “maneira Shackleton” de administrar – manter todos os empregados vivos e motivados, apesar de não atingir as metas de empresa – não seguraria executivo nenhum em seu emprego.

A Viagem do Nimrod

Após servir sob o comando de Scott na expedição do Discovery, retornando antes do fim da expedição a contragosto, aparentemente por um misto de escorbuto e desentendimento com o líder da expedição, Shackleton organizou uma expedição particular, a do Nimrod, com o objetivo declarado de ser o primeiro homem no Pólo sul. Como era uma expedição particular, Shackleton tinha consciência de que somente com o Pólo como chamariz poderia atrair a imprensa e com ela o dinheiro dos patrocinadores. Para os puristas que vêem uma mercantilização das expedições atuais, saibam que Sir Ernest – assim como todos os exploradores de sua geração que não tiveram apoio irrestrito de seus governos – vendia suas expedições, literalmente, de porta em porta, cedendo direitos de imagem, de publicação, participando de comerciais para biscoitos caninos, etc.

Apesar de não ter atingido a meta almejada, a primeira expedição de Shackleton como comandante não pode ser considerada um fracasso: bateu o recorde de mais alta latitude e descobriu a passagem por aquela que até hoje é a principal rota para o Pólo a partir da Plataforma Ross – a Geleira Beardmore. A meros 97 km do pólo, Shackleton se viu forçado a retornar. Apresentando já sinais de escorbuto e com a projeção de provisões indicando que não teriam comida e combustível suficientes para voltar, Shackleton escolheu sobreviver a ser lembrado como o britânico que chegou ao Pólo, mas morreu tentando voltar – destino que estava reservado a seu antigo comandante, o Capitão Scott.

Shackleton usou pôneis, o recorrente erro inglês em expedições polares. A queda de um dos pôneis em uma fenda, levando consigo muitas provisões, determinou o retorno precoce, tão perto da meta. Lendo The heart of the Antarctic, o relato da expedição do Nimrod, tem-se a impressão clara de que foi por puro azar que Shackleton não chegou primeiro ao Pólo, bastaria aquele pônei ter escapado da fenda, bastaria haver mais pôneis para fazer a travessia. Sou da opinião de que foi aqui que a tragédia de Scott no pólo começou a ser escrita.

Pergunto-me se, diante da comoção criada pela morte de Scott, Shackleton em algum momento teria se arrependido de não ter seguido até a morte, perecendo em alguma barraca esquecida no Platô Polar, mas com a certeza da imortalidade.

A viagem do Endurance

Conquistado o Pólo e ferido o orgulho britânico, Shackleton elaborou um mirabolante plano para atravessar o continente – um feito ainda mais difícil que a conquista do Pólo e que certamente levantaria os espíritos britânicos. A idéia era adentrar ao máximo no Mar de Weddel com o Endurance (nome dado em referência ao lema familiar de Shackleton, Fortitudine Vincimus/By Endurance We Conquer), estabelecer base na costa e marchar até o Pólo usando cães (ao contrário de Scott, Shackleton aprendia com os próprios erros). Simultaneamente, o Aurora partiria da base em McMurdo, na Plataforma Ross, e seguiria em direção ao sul pela rota da Geleira Beardmore, deixando provisões para a segunda metade da jornada de Shackleton.

Tudo que se possa imaginar deu errado na viagem do Endurance, mas ainda assim a tripulação sobreviveu. O Endurance encontrou condições atípicas de gelo, muito avançado para a estação, e acabou ficando preso no gelo antes de poder chegar à costa. Retornar não era uma opção: a Primeira Guerra Mundial fora declarada no exato dia em que o Endurance saiu do porto. Shackleton colocara o navio e a tripulação à disposição do esforço de guerra, mas recebeu lacônica ordem do Chefe do Almirantado, ninguém menos que Winston Churchill: “Proceed.” Esperar mais um ano por condições meteorológicas favoráveis teria sido injustificável. Presos no gelo, os tripulantes se entregaram à monotonia da longa noite polar esperando o verão para prosseguir viagem.

As correntes marítimas predominantes no Mar de Weddel seguem o sentido horário, comprimindo o gelo junto à ponta da Península Antártica. “Preso como uma noz no chocolate”, o Endurance seguiu à deriva por sete meses ao sabor da corrente. Apesar da temperatura crescente, o Endurance não conseguiu se ver livre do gelo, caiu no “mar de pressão” entre o Mar de Weddel e a Península Antártica junto aos enormes blocos de gelo que, inevitavelmente, esmagaram seu casco.

Perdido o barco, sem comunicação nenhuma – rádio era um luxo para a época; o governo argentino deu como presente um aparelho tosco para a expedição que só recebia, mas nunca funcionou – e sem que o mundo exterior desse por sua falta, havia uma guerra a ganhar, Shackleton juntou o que pôde em trenós e nos três botes salva-vidas e botou sua tripulação a arrastar tudo sobre o gelo, tentando atingir a península, onde se poderia esperar o resgate de um navio baleeiro.

Logo ficou claro que o deslocamento era patético demais para valer o esforço e o consumo de provisões. Relutante, Shackleton concordou em acampar no gelo e seguir à deriva, torcendo por condições mais “propícias”, se é que essa palavra pode ser aplicada nesta situação.

Cinco meses e meio depois, os botes foram lançados, já sem chances de atingir a Península. Muitas horas remando sem parar e sem dormir, os três barcos conseguiram achar a Ilha Elefante, uma das ilhas mais ao norte do arquipélago das Shetlands do sul, onde ninguém jamais havia botado os pés (vale lembrar que toda a navegação era feita com base no cronômetro, nos astros e nas tabelas de cálculo). Cinco meses e meio vivendo sobre o gelo, alimentando-se do que fora salvo do barco, de carne e gordura de foca e, quando a situação apertou ainda mais, dos cães.

Lansing descreve o martírio que era defecar nessas condições. A dieta baseada em carne e gordura de foca causava freqüentemente desarranjos intestinais nos membros da expedição, que tinham que localizar um bloco de gelo elevado o suficiente para fazer suas necessidades; não por uma questão de privacidade, mas para barrar o vento que congelava o fiofó à menor exposição. Neve era o papel higiênico. Fica por sua imaginação quanto tempo eles ficaram sem tomar banho.

Mas a Ilha Elefante, além de ser desabitada e de ter péssimas condições meteorológicas, não oferecia nenhuma possibilidade de resgate, não era rota de baleeiros. O pedaço de civilização mais próximo da ilha é a ponta da América do Sul ou ainda as Ilhas Malvinas. No entanto, esses destinos eram impensáveis, pois significaria atravessar a Passagem de Drake em um barco aberto. O destino mais provável era a Ilha Geórgia do Sul, ilha ocupada por baleeiros onde a expedição fizera sua última escala antes de atacar o Mar de Weddel. Shackleton partiu com um pequeno grupo para buscar resgate aos demais na Ilha Elefante. Uma jornada de 800 milhas náuticas nas águas mais revoltas do planeta em um bote improvisadamente adaptado para encarar mar aberto, até hoje um dos maiores feitos náuticos da história.

Shackleton superou mais esse obstáculo. Porém, em uma demonstração clara de que Deus é uma criança sádica, o bote chegou ao lado desabitado da ilha. Shackleton precisou ainda escalar uma cadeia de montanhas jamais mapeada, sem equipamentos, até chegar à estação baleeira.

O resgate dos homens na Ilha Elefante ainda demorou semanas de tentativas frustradas e má vontade do almirantado britânico, mais preocupado com a guerra. Até que, em um rebocador chileno nada apropriado para a tarefa, o Yelcho, toda a tripulação foi resgatada, todos vivos.

A expedição do Endurance é talvez o fracasso mais celebrado da história das expedições, ao lado da viagem da Apolo 13. A viagem do Aurora, por outro lado, não teve a mesma sorte: a outra metade da Expedição Imperial Transantártica conseguiu estabelecer os depósitos até a Geleira Beardmore, mas ao custo de vidas. A travessia do continente antártico só seria feita, com apoio aéreo e modernos tratores polares, no final dos anos 50, durante o Ano Geofísico Internacional, por Sir Edmund Hillary (sim, o mesmo do Everest) e por Sir Vivian Fuchs – ironicamente, segundo Hillary, o naufrágio do Endurance salvou as vidas da tripulação de Shackleton. Terminada sua travessia, Hillary afirmou que, dadas as dificuldades que enfrentou, não via como o plano de Shackleton pudesse ter sido bem sucedido.

De volta à civilização, ainda jogada nas trevas da insana Primeira Guerra Mundial, os membros da expedição não demoraram muito até irem para a linha de frente, onde muitos pereceram. Shackleton faleceu no início de 1922, de ataque cardíaco, na Ilha Geórgia do Sul, primeiro destino da expedição do Quest, na qual Shackleton reuniu muitos de seus antigos companheiros do Endurance em uma viagem sem um objetivo claro - talvez, apenas, despedir-se.


Para saber mais:
Em edição brasileira, há apenas três fontes sobre a expedição do Endurance que merecem ser citadas: o diário de Shackleton (SHACKLETON, Sir Ernest. Sul, a fantástica viagem do Endurance. Alegro, 2002), as imagens de Frank Hurley (ALEXANDER, Caroline. Endurance, a lendária expedição de Shackleton à Antártida. Cia. das Letras, 1999) e o incrível trabalho de Alfred Lansing sobre o tema, baseado em todos os diários escritos durante a expedição e em entrevistas com os sobreviventes lá pelos anos 50 (LANSING, Alfred. Endurance, a incrível viagem de Shackleton. Alegro, 2004). Há uma infinidade de livros em inglês sobre Shackleton e o Endurance, inclusive uma farta biografia feita por Roland Huntford, Shackleton, mas de tudo que li o livro de Lansing ainda é, de longe, o melhor.

Em DVD, citaria ainda o documentário dirigido por George Butler, narrado por Liam Neesom e escrito por Caroline Alexander, homônimo a seu livro, e a recriação dramática Shackleton, bastante fidedigna, com Kenneth Branagh no papel principal, dirigida e escrita por Charles Sturridge.