04 janeiro 2006

De minhas origens 3: A Fábula de Bibiano

O grande divisor intergerações de Santos foi o bonde. Existem duas faixas etárias na cidade: os que viveram a época dos bondes, os que não viveram a época dos bondes. "Da época do bonde", é uma expressão que divide a cidade em duas.

Santos chegou a ter uma das melhores malhas metropolitanas do Brasil, administrada por uma empresa inglesa, como muitos outros serviços públicos o eram na época. Elétricos, em carros de madeira invariavelmente conduzidos por imigrantes portugueses de quepe e farda cáqui, fechados ou abertos, os bondes circularam até os anos 60, quando foram substituídos por pouco charmosos ônibus a diesel.

Hoje existe apenas uma linha turística, (re)inaugurada faz poucos anos, mas até minha infância ainda era necessário tomar cuidado com os trilhos do bonde ao atravessar a rua, mesmo que tivessem já sido praticamente engolidos pela camada de asfalto sobre os antigos paralelepípedos. Creio que nos anos 80 circulou uma linha turística na avenida da praia, mas isso pode ser efeito da memória coletiva da cidade nas lembranças de minha infância.

Algumas das melhores histórias da cidade são da geração do bonde e têm os veículos como cenário. Meu velho até hoje recita sem dificuldades o versinho que havia em uma propaganda da época, onde se via uma garbosa loira em um escandaloso biquíni; que deve ter sido farto material para as fantasias de sua puberdade, mas que hoje provavelmente só faria rir.

"Veja ilustre passageiro/o belo tipo faceiro/que o senhor tem a seu lado/e no entanto, acredite,/quase morreu de bronquite/salvou-o o Rhum Creosotado!"

Meu velho era esperto, malandro que só. Quando voltava da escola, viajava no estribo (i.e., o apoio lateral do carro), enganava o cobrador português, e com isso economizava o dinheiro exato para comer um pastel na esquina de casa. Até o dia que sua madrinha subiu no mesmo bonde. "Bença, madrinha". "Deus te abençoe, meu filho". O português dedurou meu velho. "Aquél' muleque é seu 'filhado? Poish él' anda a viajar no shtribo!!".

Naquela noite houve surra. Meu avô bateu de ripa de cerca em meu velho, que estava se arrumando para uma festa da escola e vestia o "uniforme de gala". Antes mesmo de apanhar, só de ouvir meu avô gritar por ele, meu velho já tinha se mijado todo e arruinado a fardinha ridícula que tinha que usar nos eventos oficiais do colégio. Depois da surra meu avô mandou meu velho se limpar e ainda o obrigou a ir na festa. Pelo menos, conta meu velho, ele então tinha assunto para iniciar conversa com as meninas...

Mas a melhor do bonde não é do meu velho, é do velho do meu tio, o Seu Bibiano. Seu Bibiano morava no morro do São Bento, onde também viviam muitas lavadeiras que faziam serviço para senhoras da sociedade santista. Seu Bibiano conta que o bonde que pegava de casa para o trabalho ia cheio de lavadeiras a entregar o serviço para a clientela. Iam elas, gorduchas, bochechudas, alegres, lenços nas cabeças em que apoiavam enormes trouxas de roupas. O carro ia perfumado de sabão de coco, alegre com o murmurejo das lavadeiras, uma espécie de coro involuntário que tornava o caminho para o trabalho mais aprazível.

Certa feita, o bonde já partia quando surgiu do outro lado da rua uma lavadeira em frenética carreira para alcançar a condução. Uma senhora gorducha corria com tamancos de madeira em uma rua de paralelepípedos enquanto equilibrava uma trouxa de roupas na cabeça, uma mão segurando a trouxa, a outra levantando o vestido. O plóc-plóc-plóc das tamancas chamou a atenção de todos os passageiros. O bonde começava a andar e a lavadeira acompanhava pelo lado esquerdo, o lado do trânsito : não podia entrar devido a uma cancela de madeira que ficava abaixada do lado do trânsito, centralizava a saída pelo lado da calçada, o que evitava a evasão de divisas. Para revolta geral, o cobrador não levantou a cancela e ordenou a lavadeira a dar a volta, o que ela fez com alguns plóc-plócs a mais, apesar de quase ter perdido uma tamanca subindo no bonde em movimento.

Algumas paradas depois, a cena se repete. O bonde se põe a caminho quando uma passageira surge em frenética carreira com o objetivo de alcançar a condução, também pelo lado do trânsito, impedido pela cancela de madeira. Porém, dessa vez, trata-se do som de saltos altos, pléc-pléc-pléc, mais agudos porque a amplitude dos movimentos das pernas era limitada por uma saia justa, o que aumentava a freqüência dos pléc-pléc-plécs. Preenchendo a saia, uma fornida e faceira moça, de cintura fina e ancas largas, daquelas que poderiam figurar em um reclame do Rhum Creosotado. Porém, dessa vez, o cobrador não só se dispõe a levantar a cancela de madeira, como também estende a mão para a moça e a auxilia a entrar no bonde...

Nem La Fontaine surgiria com uma frase que resumisse melhor a moral dessa história, mas Seu Bibiano jura que ouviu: "É...p'ra ela que é nova, levantas o pau!"

Reedição de um texto publicado em 04/06/2004 no meu outro, já finado, blog.

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