15 fevereiro 2006

Dia 4. Ferraz

Fim de noite de 15/2. Tanta coisa acontece e são tantas horas de luz por dia que eu tive que checar minhas anotações para saber se este era o dia 4, 5 ou 6 da viagem.

O tempo não colabora muito, tudo encoberto, 0°C com sensação térmica por volta de -10°C devido ao vento entre 10 e 15 nós, com rajadas de ventos cataclísticos (que eu conhecia na literatura polar como willywaws) - pancadas fortes e curtas, imprevisíveis, que descem das regiões mais elevadas pelas geleiras (no caso aqui da Geleira Stenhouse e da Barreira Ajax, em frente à Estação, do outro lado da baía), fenômeno que ocorre na Antártica e na Patagônia. Mawson, o explorador australiano, acreditava que acontecem simplesmente pela ação da força da gravidade, uma avalanche de ar frio descendo encosta abaixo. Se non è vero, è ben trovato.

O pessoal no Rongel é super simpático, o ambiente muito mais informal do que eu esperava, mas dá para perceber que eles já estão de saco cheio disso aqui e querem voltar logo para casa. Esse espírito contrasta completamente da empolgação do paisano aqui, que fica enchendo a paciência deles no passadiço tirando fotos. Já tirei mais de 100, tive que dar uma editada nas piores para poupar o chip. Ferraz fica na parte norte da Baía do Almirantado, caracterizada pelas geleiras mencionadas acima e por montes negros de 100-200 metros da mais negra rocha vulcânica, muito porosa devido às temperaturas extremas.

Não há muito o que fazer no navio, então na primeira oportunidade embarquei em um zodiac (bote inflável) para Ferraz. A temperatura da água fica em torno de 2°C, o que dá mais ou menos 90 segundos de vida para o pobre paisano que cair na água, por isso é necessário vestir por cima da jardineira e do casaco, com bota e tudo, uma roupa especial inflável e semi-seca (ie, não completamente vedada) da cor "laranja-mamãe-não-me-perca-na-neblina", as Mustangs. Parece que você vai desembarcar na Lua, não na Antártica.

Desembarque em Ferraz

Nenhum pingüim à vista, mas me prometeram alguns assim que melhorar o tempo. Somente uma Skua, uma ave de rapina cinza que parece uma gaivota mal encarada. Desembarquei na praia pedregosa da Estação Antártica Comandante Ferraz, aproveitando a carona do Chefe de Operações que veio checar dados para uma "faina" de carga e descarga.

Com o link da Telemar por satélite, que possibilita ligações VoIP para o Brasil como se fosse do PABX da Marinha no Rio de Janeiro, o pessoal da tripulação aproveita também qualquer oportunidade para vir para fazer um 21 para a família (21, 31, entendeu? dããã). Isso dá um gás para o pessoal que fica longos períodos aqui. Liguei a cobrar para meus velhos, será que vai sair caro? Enquanto teclo, há um pessoal vendo o jogo do Vasco em um telão, tudo graças à anteninha da Telemar.

(Disclaimer: não recebo jabá da Telemar)

Em Ferraz, acompanhei o Chefe da Estação enquanto dava o tour para seu sucessor no Grupo Base que chega. Dos 8 módulos (containers) originais de 1982, Ferraz cresceu para mais de 60 módulos, atualmente em reforma para interligar os módulos existentes em uma construção só e agregar mais alguns espaços. Pode dar a impressão de se estar em um navio em alguns momentos, mas o conforto é infinitamente superior. Fiquei bastante impressionado, surpreso até, com o conforto das instalações. As partes de convivência comum têm acabamento em madeira, o que é sempre agradável, a temperatura é mantida para ficar de camiseta, os camarotes são espaçosos o suficiente para permitir que duas pessoas não se matem. A Marinha conserva isso aqui com uma competência e um zelo de encher os olhos.

Na Estação me sinto mais à vontade, com o pessoal que conheci no percurso de avião. Fui promovido, virei o "Senhor Embaixador", algumas vezes sou o "Merré" (MRE). Todo mundo sabe que sou um nada hierárquico, mas o apelido pegou. Agora, o engraçado é que aparentemente tem gente que não entendeu que é um apelido.

Saída da Estação

Deve ter gente pensando que essa viagem é um hoax...."pô, esse cara diz que foi para a Antártica mas fica um tempão no messenger e blogando. Deve estar na praia no Rio". Para sair da Estação, é necessário estar acompanhado de um alpinista do Clube Alpino Paulista, que tem uma parceria com o Proantar para assessorar os militares e pesquisadores. No Brasil, quem entende de andar pelo gelo são eles, e graças a essa parceria o Proantar nunca perdeu alguém na Antártica, as ocorrências mais graves foram umas fraturas e um ou outro ataque cardíaco. Assim que o alpinista estiver liberado, vou bater perna por aí. Enquanto isso, fico aqui como se estivesse no escritório....blogando, blogando....


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Piada de corno

Tocar instrumentos musicais parece pré-requisito para fazer parte do Grupo Base que assumirá a próxima temporada. Os caras vieram com um verdadeiro arsenal musical, violões, contra-baixo elétrico, estúdio portátil, etc. Diante da preferência musical de alguns por músicas sertanejas, o alpinista comentou "Pô, só tem música de corno, meu!". A resposta de um oficial: "Por que você acha que esse povo vem pra cá....?"




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Nota escato-ecológica

Dei um cagãozinho na Estação. Ele será devidamente acondicionado e congelado, para depois retornar ao Brasil, de acordo com as normas estabelecidas no Protocolo de Madri. Bostex internacional.

1 comentaram:

Anônimo disse...

muito bom o relato!