06 agosto 2005

Meu velho e o uso apropriado do chulo

Pouco mais de uma semana atrás, meu velho sofreu um seqüestro relâmpago. Por sorte, nada grave ocorreu. Os assaltantes não criaram tensão e meu velho manteve a cabeça fria. Em uma demonstração de que tinham total controle (ou eram muito burros, sei lá)até deixaram o velho ligar para minha mãe...

Em homenagem ao velho, republico (ou reposteio?) uma historinha de meu falecido outro blog, para lembrar o quanto gosto dele.

Meu velho e o uso apropriado do chulo

Há uma história sobre meu velho que, creio eu, todos meus amigos já conhecem. Eu a conto à exaustão. Serve, de certa forma, como cartão de visita - uma historinha que conta um pouco de onde vim e que demonstra ao interlocutor que, a partir de então, formalidades podem ser abandonadas.

Nem sei mais se é uma história verdadeira. O causo realmente ocorreu, mas acho que minha lembrança vai-lhe acrescentando detalhes sutilmente a cada vez que o conto. Não importa. Resolvi finalmente por no papel, apesar da certeza que tenho de que meu velho não vai gostar muito. Divirtam-se.

Sendo filho de doqueiro e - por algum tempo na juventude - doqueiro também, meu velho nunca foi de dar atenção a requintes de linguagem. Deixem-me elaborar isso melhor. As docas eram um ambiente predominantemente masculino, machista, e, como tal, nada refinado. Sendo a cidade dependente do porto, naturalmente, os códigos de conduta e de comunicação do cais passaram a permear todo o tecido social, especialmente em situações informais. Um exemplo: meu avô não chamava por meu velho por nome ou algum apelido carinhoso, ele assobiava - meu avô tinha um assobio com tom, duas notas e duração específicos para chamar por seu filho.

Mas a manifestação mais clara desse traço portuário no dialeto local é a abundância de palavrões na comunicação, mesmo quando se quer bem ao interlocutor. Doqueiros são homens sem muita frescura; porras, caralhos e cus são como vírgulas para eles. Ao terminar a faculdade e subir a serra para trabalhar em escritórios, meu velho conseguiu dominar essa predisposição ao chulo, mas sempre abusou dos palavrões para se expressar em casa.

Isso me trouxe alguns problemas durante a infância: minha professora do primário não compartilhava da opinião de que palavrões são uma forma natural e espontânea de expressão. Era complicadíssimo: se meu velho podia tratar seu melhor amigo por "seu puto", por que eu não podia dispensar o mesmo tratamento a meus coleguinhas de sala?

Com o tempo aprendi que não é em todo lugar que se pode falar palavrão. Confesso, no entanto, que meu velho até hoje tem uma habilidade maior do que a minha para distinguir quando se pode ou não usar o chulo.

Mas não naquela noite. Naquela noite, meu velho perdeu um bom bocado de sua autoridade perante os filhos. Foi na hora da janta, hora sagrada em que meu velho fazia questão da presença de todos da casa. Hora do fórum familiar, de contar como foi seu dia, hora das grandes lições de vida que pais dão a seus filhos, mesmo que eles só as ouçam como um necessário prelúdio à sobremesa. Hora em que não se podia falar palavrão.

Era também na mesa do jantar que ocorriam as reprimendas verbais pelos desvios de conduta dos filhos. O mano e eu fomos criados com um grau de liberdade elevado, mas havia um limite: a paciência da mãe. Meu velho podia representar melhor o papel de provedor da casa, mas todos sabiam, inclusive ele, que sempre foi a mãe a condutora daquele pequeno universo familiar. A mãe era superior a todos nós, todos lhe devíamos respeito e cultuávamos sua autoridade - ainda que sob a aparência de fragilidade. Poucas coisas irritavam mais meu velho do que quando desrespeitávamos a mãe.

Naquela noite o jantar foi silencioso, durante a tarde o mano havia cometido alguma desfeita, tinha sido malcriado com a mãe. Nem lembro mais o que foi, mas foi grave. Ao saber do ocorrido meu velho teve um surto de raiva. Poucas vezes vi alguém dar um esporro tão desconcertante. A veia dele saltava, os óculos escorregavam pelo nariz, o velho parecia crescer na cabeceira da mesa e sua voz ecoava pelos azulejos da cozinha. Em proporção inversa, o mano diminuía, sentado em cima das próprias mãos, seu pescoço desaparecia entre os ombros e a cabeça baixa parecia procurar algo entre os feijões, que esfriavam.

Tive pena do mano, mas não tive coragem de intervir. Até a mãe ficou constrangida, achou que não era para tanto, e segurou o ímpeto do velho.

Diante da clemência da mãe, meu velho pareceu desinflar e voltar ao tamanho normal. Mas ele precisava fechar o esporro com algo que fizesse com que ninguém jamais desrespeitasse o culto à mãe novamente. Tinha que ser ameaçador, tinha que ficar impregnado no inconsciente para toda a vida. O velho voltou a crescer, pareceu ficar ainda maior do que ficara antes. O punho cerrado, firme, apontava o indicador ameaçadoramente, a poucos centímetros do nariz do mano - que não sabia se olhava para o dedo ou para a cara do velho. Houve um constrangedor instante de silêncio, até que meu velho falou. Gritou, na verdade; a voz parecia não sair dele, parecia vir de um buraco profundo, de um lugar que guarda todos os medos da infância.

"- Você.....você....você nunca mais fale assim com sua mãe, seu FILHO DA PUTA!"

1 comentaram:

Lucia Malla disse...

Eu tive a experiencia exatamente oposta. Em casa era proibido falar palavrao. Minha mae nunca levantava a voz para nada. Acho q eh por isso q hoje eu ainda me sinto desconfortavel se solto um palavrao qualquer - embora o faca de vez em quando.