05 agosto 2005

Chichester e o Gipsy Moth


Um senhor de 65 anos, míope de fazer dó, vegetariano, recém recuperado de um
câncer no pulmão, resolve dar a volta ao mundo em solitário e bater o
recorde de velocidade nesse tipo de travessia. Premissa perfeita para um
livro de auto-ajuda sobre superação individual, material para anos de
palestras motivacionais, não é mesmo?

Felizmente, Sir Francis Chichester não vai por aí. Gipsy Moth Circles the
World
é quase um livro técnico, com trechos um tanto herméticos;
provavelmente não empolgaria muita gente sem algum interesse específico em
náutica. Ainda assim, tem uma irresistível aura de pioneirismo: Chichester
não bateu o recorde de velocidade devido a grandes inovações (com exceção
talvez do leme de vento, tecnologia não disponível a seus antecessores
solitários), mas em grande parte porque foi o primeiro a viajar com esse
objetivo em mente, seus predecessores queriam apenas viajar, não viajar mais
rápido. E que melhor razão do que simplesmente querer?

De Plymouth a Plymouth, com uma parada em Sidney, via Cabo da Boa Esperança
e Cabo Horn. Viajando sozinho, mas apostando corrida com um passado
romântico, do qual ele era um estudioso: a era dos Clippers, gigantescos e
extremamente rápidos veleiros que faziam rotas comerciais regulares no
século XIX a serviço do Império Britânico, transportando chá, lã, algodão,
etc. (Todo pinguço sabe do que estou falando, já viu um clipper no rótulo do
Cutty Sark, whisky batizado em homenagem ao mais famoso desses barcos.)

Chichester estimava em 123 dias a duração média da travessia Plymouth-Sidney pelos clippers e 100 dias para os melhores barcos - corria contra esse tempo. Não haveria como o Gipsy Moth bater a velocidade média dos clippers,
mas para compensar podia navegar muito mais próximo do vento. Chegou em 107
dias, por pouco, em grande parte devido a uma quase capotagem que danificou
o leme de vento. Chichester improvisou uma forma de manter o curso em
relação ao vento amarrando o leme a uma vela de estai. Feitos os reparos em
Sidney, o Gipsy Moth dobrou o Cabo Horn e voltou a Plymouth em 119 dias, 274
dias de travessia no total, incluindo o período em terra, entre 1966 e 1967.

A verdade é que, apesar de ter sido planejado nos mínimos detalhes para essa
viagem, o Gipsy Moth estava mais para cavalo chucro do que para veleiro.
Chichester passa boa parte do livro xingando os designers do barco por
terem distorcido suas instruções até tornar o projeto irreconhecível - a
ponto de eles terem tentado impedir a realização da segunda metade da viagem
com receio das implicações legais de um eventual acidente mais grave. É em
momentos como esse que o livro é mais interessante; apesar de dialogar com a
romântica era dos clippers, Chichester não romantiza sua própria viagem, não
cria um vínculo afetivo com seu barco, não se sente integrado à natureza,
apenas quer terminar sua volta ao mundo. Há um trecho que exemplifica bem
isso quando, próximo da América do Sul, ele envia um despacho telegráfico
mandando uma jornalista às favas, ordenando que pare de tentar romantizar
sua viagem. Autenticidade é pouco.

A viagem de Chichester é um marco. Por um lado, faz referência ao passado, à
era de ouro da dominância britânica dos mares e ao tempo em que a vela ainda
não havia sido substituída pelo vapor. Rule Britannia, Britannia rules the
waves!
. Não por acaso, Chichester foi condecorado Sir, com a mesma espada de
condecorou Drake. Não por acaso, o Gipsy Moth hoje divide o cais com o Cutty
Sark
, aberto à visitação.

Por outro lado, inspirou a realização de uma das primeiras regatas de volta
ao mundo, a Whitbread, hoje Volvo Ocean Race - da qual participará este ano
pela primeira vez um barco brasileiro, o Brasil 1, timoteado por Torben
Grael). Uma viagem nostálgica, mas que serve de referência para a moderna
vela de competição. Um elogio ao passado e o início de uma nova era.

1 comentaram:

Lucia Malla disse...

A decisao de nao tornar uma "sessao de auto-ajuda" a viagem dah um sabor muuuuuito mais especial a aventura...