04 setembro 2005

Do valor de mitos e erros

Quando estávamos no colégio, Tia Lenilda tinha uma explicação bastante simples para grandes viagens e explorações: era tudo parte do sistema capitalista, seja em sua fase mercantilista ou imperialista. Exploradores eram agentes de uma lógica de acumulação e exploração, buscando especiarias, minérios, matéria-prima ou mercados para a Europa.

Apesar de aceitar por um bom tempo a lógica pseudo-marxista que prevaleceu na maioria dos colégios que freqüentei na adolescência, algo nela sempre me incomodou, faltava algo. Talvez por ingênua fé na humanidade, eu nunca consegui ver indivíduos arriscando seus pescoços para colocar pimenta na mesa dos outros. Talvez de alguma forma latente percebesse já que o raciocínio quadradinho exposto acima é uma racionalização a posteriori baseada em premissas ideológicas bastante restritas que viriam a ser criadas somente no fim do século XIX e no início do XX e que, portanto, não podia explicar adequadamente a motivação daqueles indivíduos que arriscavam a vida em mares nunca dantes navegados séculos antes.

Claro que não sou idiota a ponto de negar a importância da lógica capitalista nas grandes viagens e explorações. Há vastos registros disso nos relatos das viagens de descobrimento. Em diários de exploradores antárticos há constante preocupação em identificar reservas minerais. Até em um livro de Amyr Klink você encontrará a preocupação em desenvolver novos produtos. Para o restrito fim deste post, basta apontar aqui para a insuficiência do raciocínio expresso acima como explicação totalizante e monocausal.

Tampouco quero aqui propor alguma tese mais abrangente para explicar viagens, exploradores e descobrimentos. O restrito fim desse post é apenas apontar para dois importantes - e muitas vezes ignorados - fatores que podem compor a explicação para algumas das grandes viagens da humanidade: o mito e o erro.

O primeiro é mais evidente. Logo vem à mente a lenda de Eldorado, uma cidade feita de ouro em algum lugar do Novo Mundo, impulsionando ibéricos mata adentro. É importante recordar que a idéia de uma cidade de ouro não era lá tão estapafúrdia se lembrarmos que os espanhóis encontraram uma montanha inteira de prata, Potosí.

Synésio Sampaio Goes Filho, em seu ensaio sobre a formação territorial brasileira, aponta para o mito da Ilha Brasil: além de escravizar índios e procurar pedras preciosas, muitos bandeirantes procuravam confirmação de relatos de um enorme lago no centro do que hoje é o Brasil, que seria a interligação das bacias hidrográficas do sul e sudeste com o imenso Amazonas, uma rota mais rápida entre o sul e o norte da colônia. Apenas a título de especulação: seria a lenda derivada de uma descrição do Pantanal?

Outro exemplo parecido, era a hipótese de um grande lago no outback australiano, baseada no fato de alguns rios correrem para o interior. Muita gente morreu de sede tentando achar esse lago, os mais célebres Burke & Wills, mas foi graças a essas pessoas que o interior da Autrália foi desbravado.

E que tal a idéia de que a Antártica seria um continente de clima aprazível e densamente povoado, cujo comércio poderia vir a superar as trocas com as colônias inglesas na América? Pessoas consideradas bastante cultas falavam seriamente sobre isso na Inglaterra do século XVII, segundo nos conta Alan Gurney. Parte dos objetivos expressos nas ordens de viagem do célebre Capitão Cook era descobrir o tal continente, ou refutar sua existência (Cook chegou próximo aos 70° sul, avistou muitos icebergs, mas não viu terra. Morrendo de frio, deu meia volta, abandonando a idéia de um continente ao sul)

O mito, quando refutado, pode ser interpretado como um erro. Mas e quando o erro já faz parte do planejamento da viagem desde o início? Colombo realmente acreditava ter chegado às Índias, não por descartar a possibilidade de um novo continente, mas por um erro de cálculo. A região do Caribe fica a uma distância da Europa aproximadamente igual àquela que Colombo julgava ter o pedaço desconhecido do globo, baseado em um cálculo errado da circumferência total. Colombo estava certo ao dizer que a Terra é redonda, mas estava errado na estimativa de tamanho. Achou algo que não conseguiu identificar o que era - por isso sou da opinião de que não é injustiça que o continente não se chame Colômbia.

Se tivesse feito os cálculos corretamente, teria que levar em consideração a distância do então desconhecido e muito maior Oceano Pacífico. De certa forma, ele deu sorte de haver um continente entre ele e as Índias - Santa Maria, Pinta e Niña não estavam prontas para a viagem completa. Teria ele conseguido apoio da coroa espanhola se tivesse feito os cálculos corretos?

Mesmo Magalhães, que terminou o trabalho que Colombo começou cometeu um erro grave, no qual estava baseada toda sua empreitada. Segundo Stephan Sweig, Magalhães tinha posse de mapas (roubados dos portugueses, se me lembro bem) que indicavam o Estuário do Prata como a saída para o oceano que ele viria a chamar de Pacífico. Apesar dessa referência não estar presente em Laurence Bergreen, ela faz bastante sentido: a viagem de magalhães foi quase direta até o Prata, onde eles avançaram bastante rio acima, até se darem conta de que não era uma passagem; a partir daí, a viagem foi um enorme pinga-pinga pela costa da Patagônia, até entrarem no Estreito de Magalhães.

Esses exemplos me vêm à mente quando encontro explicações muito lógicas e racionais para determinados eventos. Pergunto-me se é explicação mesmo ou apenas uma forma de organização mental para tornar mais palatável o que não conhecemos - isto não é conhecimento, é fé. Como um grande professor meu da faculdade fazia questão de lembrar: conhecimento não é produzido ao confirmar hipóteses, apenas ao refutá-las. Você não está mais sábio ao provar algo como certo, o máximo que se pode alcançar é estar menos ignorante ao provar algo como errado.

1 comentaram:

Emerson Novais Lopes disse...

Receba os agradecimentos deste seu humilde colega pela citação e "linkagem" para meu ainda mais humilde e já encarquilhado artiguinho!