11 março 2008

Torce e retorce

Eu poderia assinar embaixo de tudo que o Tio Riq, o cara que mais entende de viagem no Brasil, disse sobre esse patético episódio dos barrados nos aeroportos de Madri e Salvador (barrados, não "deportados": você precisa estar dentro do país para ser deportado). Mas iria ainda além: o tiro não é só no pé da indústria turística brasileira, é também no pé dos brasileiros que viajam para a Europa. Houve quem dissesse que isso é uma questão de "respeito" e de "orgulho nacional": não sei que diabo de solução é essa em que todos saem perdendo.

Explico: ao retaliar aplicando a "reciprocidade" (tecnicamente, não se trata de "reciprocidade", mas de "retorção": aplicação de uma medida formalmente legal para retaliar outra equivalente, vulgo "operação padrão" - como também era o caso das digitais norte-americanas) cria-se a ilusão de que as autoridades brasileiras estão lidando com a questão, quando não chegam a arranhar o problema de fato: o "tratamento Guantánamo" recebido por cidadãos brasileiros em Barajas, Lisboa e Heathrow. Viajantes cuja entrada foi negada na europa, muitas vezes arbitrariamente, são mantidos incomunicáveis, em condições precárias, sem atenção médica adequada, sujeitos a abusos de autoridade por dias até que haja alguma vaga em vôos para retorno. A retaliação simplesmente justifica esses abusos, mas limpa a consciência de quem deveria estar trabalhando para acabar com eles.

O tratamento que foi dado à questão na imprensa brasileira é ridiculamente preconceituoso, tanto quanto o preconceituoso agente de aeroporto espanhol: o problema existe há anos, é bem mais grave do que o publicado, mas ganhou repercussão porque gente "de bem" foi barrada. Salvo exceções, a mensagem geral dos jornais foi: como os espanhóis se atrevem comparar esses meninos a caminho de um congresso de estudantes universitários com a ralé que tenta migrar para o exterior?

O artigo da Barbara Gancia (em 29/02/2008, link para assinantes) foi a expressão máxima disso, uma das maiores demonstrações de preconceito que já vi contra a comunidade de brasileiros no exterior, me deu verguenza ajena:

"Qualquer um que já tenha viajado à Europa sabe do que brasileiros são capazes quando estão no exterior. Travestis tapuias se prostituem por dois tostões na Itália e na França. Em Portugal e na Espanha, somos conhecidos como traficantes de drogas e, na Alemanha e na Suíça, as brasucas são tidas como prostitutas de luxo."
A autora admite estar fazendo uma "generalização grosseira", mas acha que ela e "o brasileiro que vai para trabalhar, estudar ou gastar seu suado dinheirinho de férias" não merecem ter o mesmo tratamento dado a brasileiros que fazem má fama "tapuia" na Europa. Quem é que merece ficar dias incomunicável à disposição de uma autoridade policial? Quem é que merece ter seu direito de ir e vir violado sem acusação formal?

Parece a cena do filme "Tropa de Elite" em que um rapaz tenta escapar dos safanões do Capitão Nascimento ao invocar sua condição de estudante. Barbara Gancia, a senhora é moleque. Moleque por fazer uma generalização grosseira dessas sabendo que é bobagem. Traficantes de drogas vão em cana quando são pegos em aeroportos - e mesmo eles têm direito a um telefonema ao ir em cana, o que muitas vezes é negado aos viajantes barrados em Barajas. Prostitutas merecem o mesmo tratamento não preconceituoso dado a colunistas. Seu artigo diz basicamente que o preconceito do agente do aeroporto não pode ser contra os brasileiros em geral, tem que ser um pouquinho mais seletivo...

O problema não são as férias arruinadas dos brasileiros barrados, a Espanha tem todo direito de barrar quem quiser, com o argumento ridículo que for - como também têm essa prerrogativa os agentes da PF de Salvador. A questão é como são tratados esses cidadãos barrados no "limbo" do aeroporto, sejam eles prostitutas ou estudantes universitários.

Graças a esse infantil exercício ufanista de virilidade que resolveram chamar erroneamente de "reciprocidade", não se avançará um milímetro no problema real: o fato de viajantes barrados serem mantidos incomunicáveis, em condições precárias. Guardadas as devidas proporções, é o equivalente a ser levado pela polícia sem acusação formal. E agora o governo deu a desculpa derradeira para que isso continue a ocorrer: é "reciprocidade".

Nesse sentido, talvez a exigência recíproca de vistos (aí sim é "reciprocidade") seja o mal menor, evitaria desgastes desnecessários ao dificultar antes da partida a entrada de potenciais barrados na Europa. Vale lembrar que visto é apenas "expectativa de direito" e que mesmo com visto o viajante ainda pode ser barrado. De forma semelhante, o México nos fez um favorzão ao passar a exigir vistos a brasileiros: reduziu o número de brasileiros mortos ao tentar atrevessar o deserto para os EUA.

Disclaimer: não precisaria dizer, mas precisa. As opiniões acima são de caráter estritamente pessoal, não comprometem meus empregadores

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